|
| O corso que descobriu Portugal
| Michel Giacometti nasceu em Ajaccio, Córsega, em Janeiro de 1929 e veio a falecer em Faro, em Novembro de 1990. Nesses 61 anos que durou a sua vida – tão breve para os seus amigos que profusamente criou, manteve e deixou em Portugal – mais de metade viveu-os no nosso País, numa permanente aventura de descoberta.
Não nos perguntamos o porquê dessa escolha de um francês – ele preferia apresentar-se como corso e insistia nisso, sugerindo-nos logo uma lição étnica e cultural que era facilmente assimilável, pois a sua pronúncia clássica de francófono não encobria o carácter mediterrânico que lhe transparecia no humor sarcástico e cortante, na afabilidade do trato, na imaginação pouco dada ao raciocínio abstracto, na modéstia que nunca alardeava os seus títulos académicos, mas que se rompia ao contar os episódios de uma recolha de canções, de uma viagem duríssima através da paisagem lusa que o encantava.
Se insistíssemos, saberíamos que se licenciara na Sorbonne, em Paris, que fizera um doutoramento na Suécia. Mas o traço que o distinguia logo nas primeiras abordagens, era o de um profundo apego ao trabalho e de uma facilidade afectuosa com que estabelecia relações com o povo. Avesso ao populismo, tratava naturalmente, de igual para igual, o povo mais pequeno, ao mesmo tempo que sabia impor, também naturalmente, o respeito pelo trabalho que desenvolvia. Num barracão desolado onde se reuniam as vozes para um coro, o silêncio estabelecia-se rapidamente entre todos, quando ele anunciava «Vamos gravar».
E as vozes desatavam-se então, e vibravam, e erguiam-se da terra e da história para que perdurassem e se registassem na memória e não se perdessem nas evoluções e revoluções da vida e do tempo.
Vozes dos princípios
Fiquemo-nos então pelo mistério dessa escolha. Portugal por quê? Pouco importa. Dê-se de barato que o itinerário que o trouxe, no trilho da mulher que conhecera em Paris e que voltara a Portugal, lhe fez deparar com um país siderado no tempo anacrónico do fascismo, onde perduravam nos campos antigas relações de produção, onde o atraso impunha ainda o uso de velhas alfaias, onde as vozes transportavam ainda canções e modas antigas. Profundo conhecedor da etnologia europeia e das ligações que unem os povos num tronco comum de antigos mitos, lendas e costumes, Giacometti terá encontrado nestas terras do ocidente europeu – a face da Europa, como lhe chamava Camões – um terreno virgem a desbravar.
Tratava-se de um terreno duro de conquistar. Com aldeias e povos isolados, sem meios de comunicação fácil, estradas arruinadas ou incipientes, trilhos pedregosos, lonjuras num país tão pequeno. Em finais dos anos 50, o jovem Michel encetou a viagem. Começando pelo princípio.
É assim que descobre Rio de Onor, aldeia do extremo Norte de Trás-os-Montes, onde perdura o comunismo primitivo, com tarefas colectivas indicadas e partilhadas por todos os vizinhos, com as suas punições decididas em plenário e registadas numa vara. A pé ou no dorso de um burro ou de uma mula que lhe transporta os instrumentos de trabalho, o precioso gravador profissional, pesadíssimo no seu estojo de couro, a bela e dispendiosa máquina fotográfica em que registou imagens desconhecidas nos centros urbanos do litoral – um espigueiro, trabalhos agrícolas, alfaias e, sobretudo, gente, velhos sobretudo, a pele sulcada pelas rugas impressas do tempo que passa acidamente, e jovens que se vão tornando mais raros na paisagem, que a emigração está aí a desertificar o País – a viagem demora-se.
É certo que o acompanha o valioso mapa que é o trabalho de um outro etnólogo, o português Leite de Vasconcelos, cuja obra, realizada muitas décadas antes, Giacometti conhece, e o ajuda na descoberta e na confirmação de lugares, usos, falares, tradições. Depois há a colaboração preciosa de Lopes-Graça, cuja pesquisa no campo da música tradicional portuguesa é vasta e se reflecte fortemente na própria obra do compositor.
Arquivos Sonoros Portugueses
Entre ambos estabelece-se cedo, para além do reconhecimento mútuo do valor do trabalho de cada um, uma amizade duradoura. Colaboram. Estabelecem planos. E fundam, logo no princípio dos anos 60, os Arquivos Sonoros Portugueses, que editam o registo das vozes do País.
Sem esse registo seriam hoje os portugueses muito mais pobres. Teriam perdido o que é fundamental para a compreensão da Pátria, para o enraizamento na identidade do povo que somos, da cultura que criamos ao transformar o mundo.
Os registos das vozes do povo, saídos do trabalho de Michel Giacometti e das suas viagens profundas ao País, são assim divulgadas e levam ao reconhecimento desse trabalho e do seu autor. Giacometti torna-se então numa referência da cultura portuguesa. Vozes encerradas nas tradições que esmorecem com a diluição de um mundo rural na complexidade e vastidão de um outro mundo – urbano e industrial – que já começou, libertam-se e invadem a urbanidade do quotidiano. Giacometti ensina Portugal aos portugueses e são muitos os jovens que aprendem a lição. Não é de excluir que o gosto e a escolha pelas disciplinas antropológicas – etnografia, etnomusicologia, etc. – tenham sido gerados no conhecimento de uma obra de pesquisa e de divulgação levada a cabo por um corso que descobriu Portugal e que fez questão de o dar a conhecer aos portugueses.
Um adufe vibra mansamente, acompanhando melodiosas cantigas da Beira-Baixa. Um grito de um homem, ao sol, guiando bois atrelados a uma velha charrua precede uma canção de trabalho. A claridade da bela aurora levanta-se da planície alentejana na música quase gregoriana de um coro. Michel Giacometti experimenta o microfone, regula os graves e os agudos, a atenção focada na qualidade do som apreciada nos auscultadores, levanta um braço. «Vamos gravar», diz.
O primeiro contacto
Estamos em Granja de Mourão. Ou ali perto, na Amareleja. A memória já não é o que era, e já lá vão quarenta e cinco anos. Era um domingo de festa, no Verão. A terra em volta ondulava sob o sol, tons de veludo ferroso, quase púrpura, laivos de camurça, amarelos escuros. No centro da povoação, como é costume nas terras raianas do Sul, houve tourada à vara larga, o bicho foi morto por um rapazola espanhol, trajado de luces. E esquartejado ali mesmo, pedaços de carne escura e sangrenta distribuídos pelo povo, embrulhados em jornal velho. Giacometti, a quem toda a gente chamava familiarmente Michéli, sentava-se numa roda. No meio, numa pequena fogueira de brasas, assava-se os pedaços de novilho, mastigava-se a carne e as fatias de pão, a festa esmorecia enquanto o crepúsculo se fazia anunciar numa lufada de ar fresco prenunciadora do Outono. O céu avermelhava para Ocidente. Ajudada pelo vinho, a conversa ruidava. De repente o tom baixou, as vozes calaram-se. «Vem aí o Regedor», murmurou um homem, manipulando os pedaços de carne extraídos das brasas.
Era assim, nesses tempo de fascismo. Os olhos e ouvidos da ditadura estavam em toda a parte e o Alentejo era especialmente vigiado, tal como as fábricas e as zonas urbanas mais pobres do litoral. Giacometti explicava que nas terras da planície era mais difícil estabelecer os primeiros contactos entre o povo, alguém de fora era visto como um pide, até «provar» o contrário nos modos, na conversa, sobretudo nas possíveis «apresentações» que funcionariam como «credenciais». Ainda assim, a sua qualidade de estrangeiro, de francês, facilitava-lhe o contacto. E as pessoas, abrindo-se ao afecto natural, lá iam contando as suas vidas, arriscando mais tarde as suas queixas e, depois, adiantando-se a mostrar de que lado estavam: «O regedor é da PIDE», avisavam.
Olhado com suspeita pelo regime, Giacometti era vigiado. Mas descobria, nas suas «expedições», de Norte a Sul, a aberta por onde o deixavam passar. Aqui servindo-se de um cura reaccionário mas de alguma cultura, cuja vaidade o impelia a mostrar a monografia de que era autor; ali usando a presunção saloia de um latifundiário que pretendia mostrar que também sabia falar francês e lhe abria o caminho para uma visita à herdade – uma vez foi dar com um estábulo em cujas paredes desvendou, sob a cal que a cobria, um fresco do século XVIII –; acolá dirigindo-se mesmo às «autoridades» que se desvaneciam perante um estrangeiro que pretendia gravar as «modas» da terra.
Nesse fim de tarde, ele contaria como demorara ali três dias a conquistar a confiança dos trabalhadores rurais. E que a gravação estava apalavrada para essa mesma noite. O dia de festa começou com um peculiar mata-bicho – tomate borrifado com sal grosso e, por cima, um «anis de terceira». Na garrafa, a marca «El Mono» dizia da proveniência espanhola da bebida forte e demasiado doce. De tarde, antes da tourada, houve missa, e o Michel lá foi entrando na pequena igreja, não tanto para salvar as aparências como por curiosidade. O templo estava vazio, à parte meia dúzia de velhas que seguiam o latinorum da missa. Cá fora, o povo juntava-se e comentava gracejando a homilia do padre. De repente, uma abada de chuva, aguaceiro de fim de Verão, rebentou fortíssima, e toda a gente entrou de roldão raspando com as botas as lajes da igreja. «O Alentejo é assim», comentou Giacometti, chamando a atenção para o facto de a religião não entrar facilmente na consciência do povo, que não casava, mas «fugia e juntava-se», que não ia à missa, que era coisa de lavradores e de velhas. O povo tinha outros rituais, como o dessa noite, em que as vozes de um coro, à palavra «Vamos gravar», começou a cantar:
Não sei se é por serem voltas do Entrudo Acho o meu amor demudado em tudo Demudado em tudo, demudado em nada Não sei se é por serem voltas de entrudada… Um caminho áspero
Ao escolher Portugal para lugar e âmbito do trabalho da sua vida, Michel Giacometti meteu-se em verdadeiros «trabalhos». Olhado suspeitosamente pelo fascismo – e a esta situação não era alheio o facto de colaborar estreitamente com um comunista, Fernando Lopes-Graça, que só a projecção internacional da sua obra impedia o regime de o encarcerar eternamente – o etnógrafo corso estava excluído de qualquer apoio financeiro oficial. Algumas vezes, o seu precioso e caríssimo gravador profissional foi posto «no prego» para que Giacometti pudesse subsistir ou arranjar provisoriamente fundos para continuar a trabalhar.
O 25 de Abril, a que ele aderiu profundamente e lhe fez renascer as esperanças no prosseguimento dos seus projectos, porém, não desmantelara o Estado fascista nem a sua burocracia. A somar a isto, o PS, que se abarbatou com as rédeas do poder – e já as detinha mesmo antes do golpe de 25 de Novembro em algumas áreas, nomeadamente da Cultura – não via com bons olhos as afinidades culturais e políticas de Giacometti com a prática e o projecto do PCP. A discriminação continuou…
Isto é, para além da perseverança no desbravar literal de caminho, à descoberta das raízes culturais de um povo, o etnógrafo teve de recorrer ao melhor dos seus esforços para não desistir dos seus sonhos e planos.
E não desistiu. Mas não deixamos de recordar a amargura e a apreensão com que, nos anos 70 já avançados, ele via o tempo correr e o Estado recusar-lhe a aquisição dos arquivos sonoros laboriosamente recolhidos – sujeitos à deterioração e consequente apagamento definitivo se as fitas gravadas não fossem recuperadas e conservadas com meios técnicos adequados. A sua preocupação era deixar ao Estado português – e não a um qualquer particular ou fundação privada – o resultado de um labor que dizia respeito no fundamental ao povo deste País que a vida e a sua escolha fizera praticamente seu.
A história da instalação do Museu do Trabalho, em Setúbal, é particularmente «rocambolesca» e Giacometti não chegou a ver a concretização deste sonho. Um livro da autoria de Jorge Freitas Branco e de Luísa Tiago Oliveira, assim como o testemunho de um camarada que de muito perto seguiu o projecto, documentam bem os escolhos atravessados no caminho áspero da concretização do Museu que hoje pode ser e é visitado por milhares de pessoas.
Francisco Lobo, o camarada que presidiu à Comissão Administrativa Democrática que substituiu a Câmara fascista de Setúbal a seguir ao 25 de Abril, também esclarece, num artigo de opinião publicado em 1995, no jornal O Setubalense, sobre as vicissitudes da instalação do Museu. Giacometti doara o espólio ao Município de Setúbal por verificar «a dedicação que a então administração autárquica atribuía à Cultura», escrevia na altura. E recordava o facto de que Giacometti lhe confiara que pensara primeiramente doar esse espólio ao Inatel – e que o não fizera «porque aquela instituição se afastara das suas obrigações para com os trabalhadores». Giacometti fora, aliás, afastado, por razões políticas e ideológicas, do Inatel, dominado desde cedo pelo PS. O espólio foi, enquanto se aguardava a cedência de um lugar definitivo, por parte da Misericórdia de Setúbal, exposto provisória mas dignamente em instalações próximas ao Convento de Jesus. Mas a Misericórdia recuou na cedência do espaço e, quando o PS tomou conta da Câmara, as peças foram retiradas e armazenadas sem condições numa arrecadação onde se mantiveram longo tempo, sem catalogação devida. A política de direita não se limita a destruir os direitos económicos e sociais dos trabalhadores. Também pretende apagar-lhes a memória…
Memória e gratidão
Um etnólogo trabalha sobre a memória de um povo e deixa-lhe a memória de si mesmo. Ao descobrir Portugal, Michel Giacometti desvendou para todos nós as memórias ainda retidas nas populações do País, memórias orais transmitidas de geração em geração através de contos e mitos; costumes e usos, imagens de trabalho e de festa, músicas e canções em que se inscrevem as penas e alegrias e esperanças populares.
Através do seu trabalho aprendemos então e aprendemos hoje de onde viemos, as palavras e formas que nos construíram. Desvendou para todos um país que ignorávamos e que muitos ignoram ainda. E, aprofundando o seu trabalho, relacionamo-nos com povos diferentes, que partilham connosco, em formas parecidas ou aparentemente afastadas, a mesma humanidade. .
. .
Ao amigo que ele foi de tanta gente – para além da fraternidade que o caracterizava e que fez dele um intelectual revolucionário cujo ânimo era o de transformar o mundo que entretanto ia conservando para que o futuro não se desgarrasse do que aspiramos a ser – a gratidão que lhe devemos e exprimimos é a de conservar o seu trabalho como se da sua própria memória se tratasse. No correr da vida – já passaram quase vinte anos sobre a data da morte do Michel – todos desapareceremos, menos os que, como marcos valiosos de um tempo e de um trabalho, ganham um lugar como o dele. O lugar de um descobridor. | |
Sem comentários:
Enviar um comentário