Discurso de Lula da Silva (excerto)

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segunda-feira, 16 de junho de 2008

EÇA de QUEIRÓS - Abordagem das personagens masculinas e femininas

Eça de Queirós e importantes personagens suas

Hora'EÇA - Um percurso pela vida e obra de EÇA de QUEIRÓS
Personagens ilustres
Abordagem das personagens masculinas e femininas
Eça castigou mais os homens do que as mulheres...
As personagens masculinas, aparentemente fortes, opressoras, dominadoras e caprichosas, acabam por tornar-se mesquinhas e cobardes.
As personagens femininas dialogam muito mais com as emoções, criando um clima de empatia que nega o pseudo mau-trato da mulher na escrita queirosiana.
Américo Guerreiro de Sousa, em reflexão crítica sobre o adultério feminino, presente em algumas obras de Eça de Queirós, anotava:
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"O adultério resulta das carências seguintes:
* sentimentalidade
* educação errada
* excesso de leituras
* lirismo
* temperamento sobreexcitado pela ociosidade
* luxúria frustrada no casamento
* falta de exercício físico
* falta de disciplina moral."
FRADIQUE MENDES
(A Correspondência de Fradique Mendes)
Figura literária criada, nos verdores da juventude, por Eça, por Antero e por Batalha Reis, o primeiro Fradique é bizarro e provocador. A poesia que dele se publica, nos remotos anos 60, e os gestos que lhe são atribuídos, n'"O Mistério da Estrada de Sintra", fazem hesitar entre o riso e a estranheza.
O Fradique que Eça, anos depois e por sua conta e risco, recupera é mais contido sem ser, todavia, uma figura convencional. É um escritor para sempre adiado, um poeta afectado pela tentação do silêncio que muito bem convinha a um certo fim de século: se a forma perfeita não existe, para quê escrever? Desabafo de Fradique: "Eu não sei escrever! Ninguém sabe escrever!".
Entre o esteticismo e o dandismo, entre a tentação do pitoresco e a ânsia das viagens, entre a dispersão risonha e o cepticismo elegante, Fradique resolve-se, por fim, em esterilidade e quase paródia de si mesmo.
JULIANA
(O Primo Basílio)
Mal aparece, n'"O Primo Basílio", Juliana está marcada. Logo de início, a criada de Luísa mostra umas feições "miúdas, espremidas"; e a "amarelidão de tons baços das doenças de coração" parece anunciar uma vida de frustrações e de sofrimentos. Como se isso não bastasse, o penteado deforma-a até à caricatura: "Usava uma cuia de retrós imitando tranças que lhe fazia a cabeça enorme."
De seu nome completo Juliana Couceiro Tavira, a criada disputa, no romance, protagonismo à patroa. E a chantagem que exerce sobre a adúltera Luísa chega a dividir o leitor, que oscila entre a repulsa e a tolerância. Porque, afinal a curiosidade doentia de Juliana, o seu azedume permanente não são fruto do acaso; eles decorrem de um ódio acumulado, resultado de uma vida oprimida, patroa atrás de patroa, alcunha atrás de alcunha: a isca seca, a fava torrada, o saca-rolhas.
Juliana transporta em si alguma coisa do Eça socialista e reformista, preocupado com injustiças que havia que denunciar; mas o tratamento que a criada sofre, no corpo do romance, acaba por fazer dela figura com sinal negativo. O que, sendo ideologicamente significativo, não impede que Juliana venha a ser uma das figuras mais fortes e impressivas de toda a ficção queirosiana. E para que não se diga que nela nada de feminino sobrevive, aí está o seu fascínio pelo feitio da botina e pela pequenez do pé: "O pé era o seu orgulho, a sua mania , a sua despesa", diz-se dela; e é a própria Juliana quem o confirma, plena de erotismo recalcado, ávida de evidência social: "- Como poucos - dizia ela - não vai outro ao Passeio!"
O CONSELHEIRO ACÁCIO
(O Primo Basílio)
O Conselheiro Acácio é a caricatura do "formalismo oficial", "nunca usava palavras triviais" e "sempre que dizia 'El-Rei' erguia-se um pouco na cadeira". Porque o Conselheiro Acácio é também um patriota atento e venerador; por isso mesmo, "dizia sempre 'o nosso Garrett, o nosso Herculano'".
E contudo, este antigo director-geral do Ministério do Reino tem culpas mal escondidas no seu cartório privado; como se não bastasse que os seus sisudos livros ficassem por vender, Acácio cultivava singulares leituras de cabeceira : as poesias obscenas de Bocage, compartilhadas, no retiro austero da Rua do Ferregial, com a criada com quem vivia amancebado.
É alguma coisa disto que D. Felicidade, beata e pateta, vem a saber. O desgosto é grande, naturalmente porque D. Felicidade nutria pelo conselheiro uma antiga paixão e também uma fixação: "Havia sobretudo nele uma beleza, cuja contemplação demorada a estonteava como um vinho forte: era a calva."
Para o imaginário queirosiano ele veio a transformar-se numa das personagens que de certa forma passaram para o mundo real. Pensando decerto neste burocrata para quem as "curiosidades" do Alentejo eram "de primeira ordem", Eça de Queirós referiu-se várias vezes à mentalidade conselheiral, quando quis aludir à oca solenidade que lembrava esta sua personagem. Longe estava Eça de saber que a língua portuguesa havia de cunhar o adjectivo "acaciano", precisamente derivado do nome da criatura que por ele nos foi legada.
JACINTO
(A Cidade e as Serras)
Zé Fernandes ("homem das serras", que disso se orgulha) coloca, no centro da história que relata, Jacinto, uma figura em mudança. No início d'"A Cidade e as Serras", encontramo-lo eufórico com a Civilização; anos depois, Zé Fernandes observa nele sinais de cansaço: "notei que corcovava". Quando parte para as Serras, Jacinto vai desconfiado, mesmo temeroso; sobrevém, por fim a revitalização inesperada: a do corpo e a do espírito.
Em Paris, Jacinto é ele mesmo mais as geringonças inventadas por uma Civilização tentacular: aparelhos sofisticados (o fonógrafo, o telefone, o conferençofone,o teatrofone), modas bizarras, escovas e pentes de feitios engenhosos, uma enorme biblioteca e modos de vida supercivilizados deixam-no cada vez mais indiferente. Porque a Civilização tudo lhe dá, menos alegria de viver. Razão tinha o escudeiro Grilo, um "venerando preto" que um dia fixou, num diagnóstico insuperável, a doença de Jacinto:"- Sua Excelência sofre de fartura."
A regeneração dá-se no reencontro com as Serras, experiência decisiva de regresso às origens, nisso a que hoje chamamos Portugal profundo; nele desdobra-se uma Natureza aparentemente pura, mas não isenta de sofrimento. E contudo, os costumes e as coisas singelas, tal como a simplicidade dos alimentos, reconduzem Jacinto à alegria de viver e mesmo ao riso. O que não implica a recusa radical da Civilização, mas antes a busca desse "equilíbrio de vida" e da efectiva Grã-Ventura que Zé Fernandes testemunha, por fim; o casamento e a paternidade acrescentam a tais qualidades uma outra: a fecundidade que na Cidade parecia cancelada.
Cabe ao Grilo resumir, outra vez com uma expressão lapidar, esse estádio final da mudança do amo: "- Sua Excelência brotou!" Jacinto já não é "Jacinto ponto final".
CONDE D'ABRANHOS
(O Conde de Abranhos)
Alípio Severo Abranhos é conde e motivo de uma biografia caricata e caricatural.
Em si mesmo, Abranhos satiriza o político do constitucionalismo, a sua mediocridade e o postiço que o atormenta; doutro ponto de vista, ele é sobretudo a falsificação do talento e da habilidade política. Em síntese, a ironia de Eça no seu máximo fulgor.
Se há figura que, na galeria das personagens queirosianas, ilustra a ambição política que não olha a meios para atingir os fins, essa figura é o conde d'Abranhos.
Finalmente ministro da Marinha, o conde ocupava-se "sobretudo de ideias gerais".
A questão - vexatória "só para os espíritos subalternos" - estava em que o ministro situava Moçambique na costa ocidental da África. Quando interpelado por uma oposição zelosa de minúcias, o conde dá uma resposta que o biógrafo classifica de "genial": "- Que fique na costa ocidental ou na costa oriental, nada tira a que seja verdadeira a doutrina que estabeleço. Os regulamentos não mudam com as latitudes!"
TEODORICO RAPOSO
(A Relíquia)
Astuto e atrevido, o "Raposão" maduro que fala ao leitor, deixa para trás uma odisseia de aventuras amorosas e de vistosas devoções.
Teodorico é o herdeiro potencial da "horrenda senhora", sua tia, D. Patrocínio das Neves que, com o seu "carão lívido", o acolhe em sua casa, depois da morte do pai Raposo. Começa então a disputa pelos dinheiros e pelas propriedades da Titi, contra um rival de respeito: o próprio Jesus Cristo.
O estratagema que há-de desbancar o rival diz muito de uma mentalidade que o Eça anticlerical trata de caricaturar. Teodorico empreende uma viagem à Terra Santa; de lá virá a relíquia que deveria converter a tia às virtudes do sobrinho. Só que Deus não dorme e a coroa de espinhos que o sábio Topsius cauciona é misteriosamente trocada pela camisa da Mary, rescendendo ainda aos delírios amorosos do "portuguesinho valente". Expulso do seio da Titi, Teodorico não perde tudo e herda um óculo: "- Para ver o resto de longe! - considerou filosoficamente Justino".
Em constante equilíbrio entre beatice e devassidão, Teodorico vai mais longe do que parece. Perpassa, no seu atribulado trajecto de aventuras e desventuras, uma reflexão sobre a hipocrisia e a duplicidade humanas.
CONDESSA DE GOUVARINHO
(Os Maias)
Da primeira vez que Carlos da Maia ouve falar da senhora condessa de Gouvarinho, a descrição é insinuante: "uma senhora inglesa, de cabelo cor de cenoura, muito bem feita".
Mergulhada no tédio de uma vida sem emoções, a Gouvarinho rapidamente faz justiça ao seu "arzinho de provocação e de ataque" e empolga Carlos. A ligação é breve, mas a senhora condessa não deixa, por isso, de ser amante nervosa e exigente; tão exigente que Carlos rapidamente se farta.
Na galeria queirosiana, a condessa é parte de uma vida colectiva, em que a mulher aristocrata - no caso, aristocrata por casamento - tinha a expressão pública que lhe era concedida pela
vontade masculina: o casamento, as obrigações sociais (receber, estar, conversar), uma ou outra leitura e, quando calhava, o adultério.
Massacrada pelas esquisitices e pelos remoques do conde, a senhora condessa não se ensaia e atira ao chão a loiça, num ataque de fúria; e, humilhada pela lembrança de que "fora ele que fizera dela uma condessa", não esteve com meias medidas: "ali mesmo à mesa mandou o condado à tabua".
DÂMASO SALCEDE
(Os Maias)
Repare-se no nome: Dâmaso Cândido de Salcede. E, logo de seguida, no cartão de visita: por baixo do nome, "as suas honras" - COMENDADOR DE CRISTO, ao fundo a sua "adresse", corrigida para dar lugar a "esta outra mais aparatosa - GRAND HÔTEL, BOULEVARD DES CAPUCINES, CHAMBRE Nº 103".
Depois de uma apresentação como esta, nada a fazer. Dâmaso Salcede está condenado a ser o que é; lisboeta novo-rico, janota e pedante, filho de agiota, o velho Silva, e sobrinho de "Mr. De Guimaran", ele é, para mais, fisicamente caricato: um "moço gordo e bochechudo", de face quase sempre corada e ostentando essa coxa roliça que a palavra perversa e arguta de Eça constantemente põe à vista do leitor.
Mas se Dâmaso é o que é, deve-o ao modelo a que se atrela; a figura de Carlos da Maia é, para ele, obsessiva. A religiosa adoração por Carlos, a quem imita e segue para todo o lado "como um rafeiro", torna-o grotesco; e a imbecilidade das suas opiniões e "toilletes", a inconveniência das suas maneiras e da sua linguagem, tudo acaba por fixar-se num tique expressivo que é, ao mesmo tempo, uma imagem de marca: "chique a valer".
Com as mulheres, nem se fala. Capaz de provocar paixões avassaladoras - tenha-se em vista aquela actriz do Príncipe Real, "montanha de carne" que, em desespero e por causa dele, procura a morte, tragando uma caixa de fósforos -, este homem fatal tudo faz para merecer o cognome de que certamente se orgulha. Dâmaso é, em suma, "o D. João V dos prostíbulos".
Por fim, Dâmaso Salcede acaba como convém: casado, traído, mas igualmente feliz e cheio de si. Ninguém como João da Ega para tudo sintetizar, em conversa com Carlos da Maia: "Coitado, coitadinho, coitadíssimo... Mas como vês, imensamente ditoso, até tem engordado com a perfídia!".




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