«Se ninguém fotografou, nem escreveu o que aconteceu durante a noite,
acabou com a madrugada. Não chegou a existir.»
Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios
«Dizem que os reis não têm memória. Parece que os povos têm muito menos ainda», proclamava Salazar em 1930. E se houve um traço genialmente perverso na ditadura que nos dominou durante quase meio século, foi a sábia gestão do silêncio; um silêncio que Marcelo Caetano preferia chamar de «seriedade e honestidade», em contraste com o «teatro» do congénere regime fascista italiano.
Eduardo Lourenço, numa obra de referência – O Fascismo Nunca Existiu -,considera que «impensado enquanto presente», durante os quarenta e oito anos da sua real e concreta existência, o Fascismo passou a «impensável enquanto passado», para um povo com uma dificuldade proverbial em inscrever na sua história os episódios mais sombrios.
Impensado enquanto presente, pelo silêncio imposto através de uma muito eficaz subtracção ou privação do direito à palavra, espaço público da cidadania em que os homens se reconhecem como iguais, discutem e decidem em comum, com vista a decisões que concernem a todos. Sem a palavra livre não há política. Salazar delimitou com rigor e método esse deserto da palavra que era o seu Estado Novo:
«Não discutimos Deus e a virtude. Não discutimos a Pátria e a sua História. Não discutimos a Autoridade e o seu prestígio. Não discutimos a Família e a sua moral, não discutimos a glória do trabalho e o seu dever» (1).
Sem direito à palavra, a política passa a fenómeno marginal e dissonante, promotor de ruído, enquanto a ideologia penetra e configura todas as instâncias da sociedade, através da transformação de um corpo social anti-político num organismo vivo. Viver Naturalmente o Fascismo foi o grande desígnio que Salazar traçou para este pais. País de costumes brandos e hábitos morigerados, país pobre, mas rico na projecção de uma imaginária grandeza. País «orgulhosamente só», protegido dos desvarios da civilização, do desconhecido e do estrangeiro. País inculto, mas feliz no respeitinho, no recato e no receio. País em inho… (Manuel Alegre)
Impensável enquanto presente pelo silêncio consentido e cultivado, paradoxalmente, na vertigem discursiva que a democracia inaugurou.
Como se a palavra finalmente solta ocupasse o vazio com um tagarelar ruidoso, forma ideal de iludir muitos silêncios. Silêncios que persistem na razão directa da sua dimensão traumática.
Regressando a Eduardo Lourenço, são conhecidas as suas teses sobre o nosso irrealismo prodigioso como povo. A forma como cerramos os olhos à realidade mais comezinha, para os abrir extasiados ao imaginário mais delirante. Daí a sua receita de uma Psicanálise Mítica para nos obrigar a encarar e a verbalizar os nossos traumas, para não sucumbirmos à compulsão da repetição, que é a forma psíquica do destino.
Mas não só o filósofo. O sociólogo Boaventura de Sousa Santos considera que
«uma das contradições estruturantes da nossa personalidade colectiva é a forma surpreendente como se casam um gosto exagerado pelo falar de si, com um autodesconhecimento que a própria fala, em vez de atenuar, potencia».
E também o escritor Mário de Carvalho, quase três décadas após a recuperação da palavra, inicia o seu livro Fantasia para dois Coronéis e uma Piscina, com esta sátira implacável:
«Assola o país uma pulsão coloquial que põe toda a gente em estado frenético de tagarelice, numa multiplicação ansiosa de duos, trios, ensambles, coros… fervem rumorejos, conversas, vozeios, brados que abafam e escamoteiam a paciência de alguns, os vagares de muitos, e o bom senso de todos. O falatório é causa de inúmeros despautérios, frouxas produtividade e más-criações (…). Passam-se dias, meses, anos, remoem as depressões, adejam os perigos e o país a falajar, falajar, falajar…»
A questão, portanto, não é a de que se não fala em Portugal do Fascismo. Fala-se muito, mas muito inadequadamente. Fala-se sobretudo de Salazar (que até ganhou o concurso da televisão pública do maior português de sempre, que esteve no centro da polémica criação de uma casa-museu na sua terra natal, e que não deixa de inspirar os mais variados tipos de publicações), mas fala-se seguindo dois impulsos igualmente redutores: o dos saudosistas que exaltam o ditador através de narrativas mistificadoras sem qualquer respeito pela história. E o dos anti-salazaristas preguiçosos que normalmente se contentam com a diabolização do homem que consideram um chefe fascista tout-court.
Nos intervalos, prospera toda uma «literatura» de fácil consumo e êxito garantido, veiculada pelos media que, cansados das análises políticas, se entretêm numvoyeurismo fútil: os seus amores secretos (de misógino celibatário a irresistível sedutor), as suas pequenas grandes angústias pela imensa responsabilidade do cargo a que providencialmente foi chamado, os seus prazeres privados de camponês desenraizado na grande metrópole, o beirão capaz de bater o pé aos grandes líderes de então, o intelectual que nunca ia ao cinema e preferia os ternos serões caseiros… as suas mantas, as suas botas, as suas galinhas… Tudo serve para uma construída e não inocente versão simpática do ilustre filho de Santa Comba…
Uns e outros ignoram a historiografia mais séria e credível (que também a temos!) empenhada na explicação do que era a realidade do país sob Salazar, bem como os reais contornos da sua figura e da sua acção. Mas esta tem diminuto acolhimento nos media, não vende, e fica demasiado confinada à comunidade académica.
Mas mesmo que assim não fosse, não podemos pedir à história o que ela não pode dar. A verdade não se reduz àquilo que pode ser verificado e explicado por qualquer sequência lógico-causal, por séries cumulativas de factos e datas, que organizam os acontecimentos, mas pouco nos dizem sobre o seu real sentido. A realidade é diferente da totalidade dos factos acontecidos. Tem a ver também com a nossa relação com o mundo e com os outros. E se sabemos quase tudo sobre as circunstâncias históricas (materiais, técnicas, burocráticas, jurídicas) que possibilitaram quarenta e oito anos de fascismo, já passado, mantemos uma paradoxal incompreensão sobre a significação ética e política dessa experiência totalitária, bem como da dimensão humana dos acontecimentos. Isto é, da sua real actualidade. Do que a sua dimensão de tragédia, sobretudo nos mais dolorosos episódios da prisão, da tortura e da morte (expoente máximo do esquecimento) nos interpela e questiona hoje.
Porque o Fascismo foi uma tragédia colectiva (e para os seus opositores mais corajosos e ousados também uma tragédia pessoal) e não foi aquilo que a classe política triunfante na democracia fez dele: «uma espécie de violência infantil que se reserva aos papões que deixaram de meter medo», como nos recorda de novo Eduardo Lourenço. Por mais que custe reconhecê-lo, o medo, essa arma poderosíssima dos ditadores, sobrevive-lhes estranhamente. Não fomos a feliz mas improvável excepção. A terrível eficácia da política do silêncio e da invisibilidade não terminou com a liquidação da ditadura em 25 de Abril de 1974. Deixou sequelas como uma doença grave e prolongada, como adverte José Gil:
«O Fascismo foi uma doença que pôs de rastos o povo português. Doença do espírito (e dos corpos) inquinados, envenenados pelo medo, pela claustrofobia e o sufoco, enfim, por esse mal difuso, essa doença da vida, invisível e indefinível, que atacava as existências, impedindo-as de crescer e de se expandir».
Só a memória é o caminho para a cura. Não a memória asséptica e arquivada. Mas a memória viva e activa, inscrição no presente de algo sedimentado por camadas de silêncio ruidoso e de ofuscante invisibilidade. Um grito contra a impunidade do tempo.