CATARINA ROCHA
09/09/2015 - 07:41
Atiraram-nos para o lixo, sem qualquer respeito pelos
corpos já sem vida. É o que contam os esqueletos de homens e mulheres presos
pelo Tribunal do Santo Ofício de Évora. Tinham problemas nos dentes e nas
articulações – mas a tortura a que eram submetidos não ficou registada no
esqueleto.
O castigo era das almas, mas os corpos foram abandonados sem
direito a cerimónias fúnebres ou compaixões de últimos instantes. Nos 20 metros
quadrados do “quintal da limpeza dos cárceres”, a lixeira da prisão do Tribunal
da Inquisição de Évora, 12 esqueletos e 980 ossos desarticulados são hoje a
memória última que sobejou da vida de homens e mulheres perseguidos pelo Santo
Ofício. Uma equipa de investigadores foi analisar essas ossadas, que datam dos
séculos XVI e XVII, e recuperar os respectivos processos acusatórios e
determinou que as vítimas terão sido acusadas de “judaísmo”, “heresia” e
“apostasia”.
Os restos mortais foram encontrados por acaso, entre 2007 e
2008, durante as intervenções arqueológicas desenvolvidas para a recuperação do
antigo Tribunal da Inquisição, edifício que hoje pertence à Fundação Eugénio de
Almeida. Ao lado, o templo romano do século I d.C. ergue-se como símbolo da
liberdade que teima em persistir. A empresa Crivarque Arqueologia e a
Universidade de Évora foram responsáveis pelas escavações no “quintal da
limpeza dos cárceres”, onde se encontravam dispersos, entre lixo doméstico,
ossos que pertenceram a pelo menos 16 pessoas. Entre 2012 e 2013, o material
osteológico foi estudado pela equipa de cientistas do Centro de Investigação em
Antropologia e Saúde da Universidade de Coimbra e do Departamento de Biologia
da Universidade de Évora, que publicou os resultados em Julho deste ano na
revista Journal of Anthropological Archaeology.
“Encontrámos ossos de pelo menos 16 indivíduos [distinguidos
pelo osso do fémur esquerdo]. Pelos relatórios arqueológicos de campo, sabemos
que mais alguns esqueletos ficaram no local, porque a área onde se encontravam
não iria ser afectada pelas obras”, diz Bruno M. Magalhães, da Universidade de
Coimbra. A área escavada constitui apenas 11,5% do total do quintal, motivo que
leva os investigadores a pensar ser possível encontrar mais restos mortais na
área não explorada. “Uma vez que se escavou uma área pequena, é previsível que
mais algumas dezenas de indivíduos falecidos nos cárceres de Évora tenham sido
atirados para aquela lixeira.”
O que fez os investigadores concluírem que os corpos teriam
sido para ali atirados foi a posição em que se encontravam. A disposição dos
esqueletos era variável, o que revelou a ausência de cerimónia fúnebre. Uns
estavam de barriga para baixo, outros de lado e outros virados para cima;
nenhum apresentava qualquer orientação da cabeça relativamente aos pontos
cardeais. Além disso, a sua posição relativamente à camada de terra indicava
que os corpos não teriam sido sepultados.
“Dos 12 esqueletos recuperados sabemos que um elemento comum
a quase todos é que não foi aberta sepultura para a sua colocação. Foram apenas
descartados, atirados para aquele local”, diz Bruno Magalhães. “Se eram tapados
ou não, não temos dados que nos digam isso, mas penso que seriam,
principalmente pelos maus cheiros que existiram no local. Pelo menos uma
pequena quantidade de terra seria colocada.”
Depois de analisarem fotografias do local tiradas durante as
escavações – nas quais participou ainda Teresa Matos Fernandes, das
universidades de Coimbra e Évora, e uma das autoras do segundo estudo –, os
cientistas foram traçar o perfil biológico de cada um dos indivíduos
encontrados. Os esqueletos pertenciam a 12 adultos, três homens e nove
mulheres.
E o que contam os ossos sobre os indivíduos e a vida na
prisão? “Sobre as condições de vida no cárcere, os ossos não contam muito.
Sabemos que aqueles indivíduos morreram no cárcere, mas nem todas as doenças
deixam provas nos ossos. E também não encontramos provas de torturas, como, por
exemplo, membros superiores ou inferiores partidos”, diz Bruno Magalhães.
“Provavelmente, se o local fosse todo escavado, teríamos outro tipo de provas.
Essencialmente, as provas que temos indicam patologia oral, patologia degenerativa
articular e não articular, vertebral, alguma patologia infecciosa e traumática,
mas que não parecem estar associadas a tortura.”
Notícias do padre António Vieira
Mas neste caso, a literatura veio preencher as lacunas no
que a biologia não pôde contar. Nas Notícias Recônditas do Modo de
Proceder a Inquisição de Portugal com os Seus Presos, publicadas em 1821, o
padre António Vieira ilustra as condições em que eram mantidos os presos no
cárcere de Évora, enquanto aguardavam julgamento.
“Nestes cárceres estão de ordinário quatro, e cinco homens;
e às vezes mais, conforme o número de presos que há; e a cada um se lhe dá seu
cântaro de água para oito dias, (e se acaba antes, tem paciência) e outro mais
para a urina, com um serviço para as necessidades, que também aos oito dias se
despejam: e sendo tantos os em que conservam aquela imundícia, é incrível o que
nele padecem estes miseráveis, e no Verão, são tantos os bichos, que andam os
cárceres cheios, e os fedores tão excessivos, que é benefício de Deus sair dali
homem vivo. E bem mostram os rostos de todos, quando saem nos Actos, o
tratamento que lá tiveram, pois vêm em estado que ninguém os conhece.”
No cárcere de Évora, os presos estavam ainda sujeitos a
tortura. Para confessarem os crimes de que eram acusados, os seus carrascos
utilizavam a tortura da polé e do potro. “A tortura da polé foi
preferencialmente utilizada pela Inquisição de Évora e era aplicada por ordem
crescente de gravidade das acusações. O réu era colocado no banco com as mãos
atadas com correias atrás do corpo e ligadas ao calabre que o içava. Era depois
erguido até onde a gravidade da sua acusação o levava e largado lenta ou
bruscamente”, explica Bruno Magalhães. “Na tortura do potro, que apenas foi
pedida pela Inquisição de Évora em 1593, o réu era deitado com uma coleira em
ferro no seu pescoço e era atado em várias partes nos braços e nas pernas. As
cordas eram depois apertadas e giradas como um torniquete, pressionando de
forma progressiva os membros do condenado e podendo chegar ao ponto de esmagar
a sua carne e ossos.”
Numa outra fase do estudo, os investigadores foram explorar
as fontes documentais que poderiam ajudar a reconstituir a identidade dos
ossos. Os manuscritos do Arquivo Distrital de Évora e os registos dos
encarcerados conservados na Torre do Tombo, em Lisboa, contribuíram em grande
escala para conhecer melhor a história. Um dos manuscritos constatava que o
“quintal de limpeza da prisão” não estaria associado à Inquisição pelo menos
até 1568. Por outro lado, os planos de construção do edifício, projectado em
1634 pelo arquitecto da Inquisição Matheus de Couto, indicavam que nesta altura
o quintal já não era usado como um local de depósito de lixo doméstico. Estes
dados levaram os investigadores a concluir que os corpos teriam sido ali
depositados entre 1568 e 1634.
Devolver a identidade
Delimitado o período de tempo, a equipa pôde recuperar 87
registos de indivíduos que teriam morrido na cadeia entre essas datas. Desses
87 registos, 11 referiam-se a presos que, depois de mortos, teriam sido
depositados no quintal da prisão. Acusados de “judaísmo”, “heresia” e
“apostasia”, os 11 indivíduos tinham profissões como tendeiro, ferreiro,
trapeiro, rendeiro, ourives ou maceiro.
“Se eram ou não judeus, isso é impossível de afirmar. Aquela
era uma época de medo e vários historiadores referem que as pessoas acusavam
familiares, amigos, vizinhos com medo de eles próprios serem acusados primeiro
por essas pessoas. Se eram realmente culpados daquele ‘crime’ ou não, isso
nunca saberemos”, explica Bruno Magalhães. Isabel Vaz, Leonor Mendes, Gabriel
Fernandes ou António Mendes são alguns dos nomes que não se perderam no tempo.
“Nem todos os processos dizem qual é o local onde a pessoa
foi enterrada. E também não conseguimos acesso a uma boa parte dos processos na
Torre do Tombo, porque estão em muito mau estado. Essencialmente, não nos é
possível dizer que aquele processo pertence àquela pessoa”, diz Bruno
Magalhães. “É possível, sim, estudarmos os indivíduos como um todo e
percebermos aquilo por que passaram desde que entraram na prisão até à sua
morte enquanto esperavam julgamento.”
Mas em grande parte dos casos o julgamento nunca chegava.
“Estes, que mal se sabem benzer, e que, se lho perguntarem, não hão-de saber
explicar que cousa é ser cristão, nem o que é ser judeu, vão logo pelos
caminhos persuadindo aos presos que confessem, e tornem para suas casas”, lemos
ainda nas Notícias de Vieira. “Porque os Senhores Inquisidores
são de muita misericórdia, que a usarão com eles: e que se não confessarem,
estarão lá muitos anos, e sairão a morrer.”
Os documentos analisados sugerem ainda que apenas pessoas
acusadas de não seguir a religião católica eram depositadas no jardim, depois
de mortas. Mas a lei da Inquisição portuguesa também o corrobora. O caso de
Francisco Machado é exemplo que mostra as diferenças de tratamento consoante o
“crime”. Acusado de poligamia, o réu recebeu em 1608 um funeral, tendo sido
sepultado na Igreja de Santo Antão, junto ao Tribunal da Inquisição de Évora.
“O propósito deste tratamento inapropriado aos mortos era não só para punir os
seus corpos, mas mais ainda para enfraquecer e destruir as suas almas”, disse à
revista Forbes, em Agosto, Bruno Magalhães.
A instituição do Tribunal do Santo Oficio em Portugal foi em
1532, no reinado de D. João III. O tribunal era simultaneamente régio e
eclesiástico e a sua acção estendia-se a todo o país e territórios da Coroa
portuguesa. Em 1821 a Inquisição portuguesa era finalmente extinta. Hoje, e
desde Janeiro deste ano, é possível a descendentes de judeus sefarditas,
expulsos de Portugal a partir do século XV, pedirem a nacionalidade portuguesa,
por naturalização.
Se a equipa vai voltar ao “quintal da limpeza dos cárceres”
para fazer mais escavações, ainda não há certezas. “Infelizmente, penso que o
proprietário do local, a Fundação Eugénio de Almeida, não tem planos para
escavar o resto do espaço nos próximos tempos. Quanto aos ossos agora
estudados, também não está para já previsto outro tipo de trabalho.” Segundo
refere o artigo científico, assinado ainda por Ana Luísa Santos, da
Universidade de Coimbra, o estudo até agora realizado vem “manter viva a
memória das vítimas” para que no futuro “actos ignóbeis como estes” não voltem
a repetir-se.
“Quatro palmos de casa cabe a cada um. Aos mortos são
concedidos sete pés de sepultura, e nem tantos de casa cabem a cada um destes
desgraçados vivos”, assim testemunhava o padre António Vieira, cristão
destemido na luta contra a Inquisição.
Texto editado por Teresa Firmino
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