E, algumas páginas antes, no mesmo livro, Aaron Betsky, director do Cincinnati Art Museum, começa o seu ensaio com a frase: "O primeiro facto que temos que encarar na arquitectura e no design é o de que não precisamos de mais coisas". Escreve Betsky que "não precisamos de mais edifícios", e, numa escala mais pequena, "a última coisa que precisamos é de mais cadeiras, mesas, candeeiros ou outras peças de mobiliário". Que caminhos podem, então, seguir os arquitectos?
"Em Portugal havia muito a lógica, que vinha sobretudo da Escola do Porto, que é de querer ver o projecto e a obra construída", diz Tiago Mota Saraiva, do ateliermob. "Num contexto em que temos claramente construção a mais", a arquitectura tem de ser diferente, defende. "A arquitectura tenta projectar o futuro, numa altura em que cada vez mais nos tentam cortar qualquer perspectiva de o fazer." E isso passa, por exemplo, por ter "arquitectos junto das comunidades a desenharem processos participativos".
O ateliermob está envolvido num desses processos, no bairro Prodac, em Chelas. "Tomámos conhecimento do problema [o bairro foi construído pelos moradores há perto de 40 anos, mas estes continuam a não ser proprietários das casas] e começámos a falar com as associações de moradores para ver como poderíamos legalizar as casas. O nosso papel aqui não é fazer projecto, é desenhar o processo participativo." Conseguiram, para a parte norte do bairro, um financiamento do programa Bip-Zip, enquanto para a parte sul estão ainda a estudar outras formas.
As casas estão lá, já construídas, agora é preciso "fazer um levantamento, detectar os riscos", o que já está a ser feito. Mas o objectivo principal é conseguir que os moradores tenham condições para se tornarem proprietários das suas casas. É, de certa forma, um regresso ao espírito do SAAL, nos anos 70, um trabalho próximo da população. O projecto, intitulado Working with the 99%, e que está a ser acompanhado pelos documentaristas Joana Cunha Ferreira e João Rosas, acaba de vencer o Prémio Future Cities, na Bienal de Arquitectura de Veneza.
Angariar fundos
Há em Portugal outros exemplos desta forma de encarar o papel do arquitecto. É o caso das blaanc, quatro sócias (Ana Morgado, Lara Pinho, Maria do Carmo Macedo Caldeira, Maria da Paz Sequeira Braga) com idades entre os 31 e os 33 anos, três baseadas em Lisboa e uma no Rio. Em 2010, conta Lara Pinho ao PÚBLICO, ganharam um concurso para construir casas para a classe emergente no Gana, com uma proposta de habitações feitas de terra pisada. "Foi aí que nos lançámos nesta nova maneira de ver a arquitectura, com maior sustentabilidade." E perceberam que esse era o caminho que queriam explorar.
A seguir participaram (já em colaboração com João Caeiro, baseado em Oaxaca, no México) noutro concurso, lançado pela Architecture for Humanity em parceria com a Nike, e foram um dos vencedores com um projecto para um centro desportivo em Oaxaca. "A ideia aqui", continua Lara, "era que a comunidade construísse em conjunto connosco".
E este projecto abriu caminho a um outro, no qual estão envolvidas, o Adobe for Women, que parte de uma ideia lançada há vinte anos pelo arquitecto mexicano Juan Santibañez para ajudar vinte mulheres a construir as próprias casas. Para recuperar o projecto, as blaanc lançaram uma campanha de angariação de fundos - uma das iniciativas é um leilão com desenhos de autor (dia 27 na Carpe Diem - Arte e Pesquisa, em Lisboa, entre as 16h e as 19h).
Para já, tem sido no estrangeiro que as blaanc têm encontrado oportunidades para fazerem o tipo de arquitectura com que se identificam, mas o objectivo, diz Lara, é conseguir fazer o mesmo em Portugal.
Pensar a arquitectura para lá da construção é também o que fazem os he-lo, Sónia Henriques e Jan-Maurits Loecke, autores do livro citado no início. "A arquitectura não é só edifícios novos. É também este livro, esta discussão. É entender como as pessoas vivem no espaço, e não necessariamente a criação de espaços novos. Os arquitectos precisam de perceber como é que as pessoas funcionam dentro dos espaços", diz Sónia, por telefone a partir de Londres. Olhar a arquitectura de uma forma diferente passa por dar atenção "a outro tipo de áreas na cidade - viadutos, a parte de baixo de uma ponte, as áreas entre a linha do comboio e as traseiras de um edifício, telhados, túneis". Os he-lo gostam, nos projectos em que trabalham, de dar visibilidade a partes dos edifícios que habitualmente não vemos. Fizeram, por exemplo, uma instalação na Alemanha a partir de um concurso para uma mesquita, em que "a ideia era que as pessoas conseguissem andar por toda a área como se fosse uma montanha, podendo aceder a todo o espaço, incluindo o telhado".
A questão é perceber por onde passa o futuro. Luís Santiago Baptista, director da revista Arqa, acredita que há neste momento duas formas de encarar a arquitectura. "Uma olha-a como uma realidade física e material, e outra vê-a como suporte de movimentos e práticas espaciais, e tem uma relação mais livre com a materialidade. Acho que as duas são complementares."
Em Portugal, explica, tem dominado a primeira perspectiva. Mas há já exemplos dessa visão da "arquitectura como palco, suporte, com um carácter mais efémero". Os primeiros acreditam que "a materialidade consegue determinar o uso", enquanto os segundos consideram que são as pessoas quem determina as formas de viver o espaço.
E embora ambas sejam "extremamente interessantes", Santiago Baptista lembra que "construiu-se demais em relação às nossas necessidades" e hoje "é difícil imaginar o que falta construir". Por isso, sejam quais forem os caminhos escolhidos, "a disciplina vai ter que se reinventar radicalmente", porque "as respostas que as sociedades exigem são diferentes do que eram há vinte ou trinta anos".