Discurso de Lula da Silva (excerto)

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quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Goya, de súbito, actual



Goya, de súbito, actual

Gostava de frequentar mais a «2:», o canal que se presume ser culturalizante, acho mesmo que tenho obrigação de o fazer, mas a verdade é que as circunstâncias não me ajudam. Por um lado, acontece que não gosto de frequentar lugares de solidão, e a baixíssima afluência de espectadores àquele canal (sondagem de audiência dixit) faz-me sentir tão isolado como se estivesse sozinho num enorme salão fechado ao público.
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Por outro lado, a amálgama aparentemente anárquica e desarrumada que é a programação da «2:» não me parece estimular a fixação de um público, e pelo menos quanto a mim não funciona como forma de atracção. De qualquer modo, como apesar de tudo o dever obriga, lá vou passando os olhos por lá no decurso das inúmeras viagens em zapping que vou fazendo vezes sem conta, dia após dia, na quase sempre frustrada esperança de deparar com qualquer coisa que me mereça o tempo e a atenção. Por sinal, agora que mudou a direcção do canal (embora lamente a partida de Carlos Vargas, que com razão ou sem ela sempre creditei por algumas das boas coisas da «2:»), renovou-se-me a esperança sempre obstinada, e por isso mesmo um poucochinho pateta, de que as coisas melhorem por lá. Mas o que até agora me tem acontecido é um sólido fastio perante a perspectiva de me tirar de outros cuidados e de passar por aquele sítio ermo em busca de momentos interessantes. Fastio que apesar de tudo tenho vindo a vencer, como se depreenderá do que acima ficou escrito. E foi precisamente num desses momentos em que o sentimento do dever e, quem sabe?, talvez também o instinto secular da descoberta através dos mares tenebrosos, me levou a passar uma vez mais pela «2:», ou talvez previamente pela programação de rigor sempre duvidoso que a imprensa diária publica, que aportei a uma rubrica relativamente obscura que decerto raros visitam, ou porventura nenhuns, intitulada «A vida íntima das obras-primas». O título tem, aliás, qualquer coisa de aliciante, mas não sei se não pretende jogar, embora com excelentes e culturais intenções, com a apetência generalizada que o telepúblico dos nossos dias tem por outras intimidades escassamente culturais. A ser assim, é mais uma situação em que os fins justificarão os meios. E bom seria que a mesma regra nunca fosse aplicada noutras situações, eticamente indefensáveis.

A similitude

A série é uma produção da BBC que, pelos vistos, ainda não abandonou inteiramente a obsoleta convicção de que a TV deve servir para mais qualquer coisa que para despejar-nos em casa concursos e notícias de desgraça. Naquela vez, a obra-prima abordada pelo programa era «Os Fuzilamentos do 2 de Maio», de Goya, uma espécie de «Guernica» com cerca de um século de antecipação, pelo menos no sentido de que é também uma indignada homenagem às vítimas da brutalidade da guerra. Porém, diversamente do que acontece em «Guernica», as vítimas que Goya fixou eram resistentes a um invasor, ou pelo menos como resistentes aprisionados estavam a ser abatidos pelo pelotão de fuzilamento. E eu fiquei-me a rever no ecrã a imagem do quadro já bem conhecido. Olhei os soldados executores, bem defendidos do clima pelos casacões espessos, os gorros de pele, os botins sólidos. Olhei os que iam cair sob as balas ou já tinham sido executados, de roupas leves, com excepção do hábito de frade que pelos vistos se teria «metido em política», isto é, teria cumprido o dever fraterno de estar do lado do seu povo. E, naturalmente, olhei sobretudo a figura central do quadro: aquele homem visivelmente de extracção modesta, de braços abertos a exporem às balas o peito que a camisa aberta mal cobria, iluminado por uma espécie de luar intenso vindo não se sabe de onde. Olhei-o, demorei o olhar naquelas feições que se diria grosseiras, e de súbito senti que aquelas bem poderiam ser as feições de um árabe que estivesse hoje a defrontar um pelotão de execução que não seria decerto do exército francês de Napoleão. É que a semelhança não estava apenas no rosto, estaria também no facto de aquele homem de feições toscas e derradeiro gesto corajoso estar ali por ter querido defender a sua terra contra a presença de estrangeiros invasores. E, então, aquela paisagem já não seria a de algures em Espanha mas de um outro lugar; aquela torre que se via ao fundo já não era a de uma igreja cristã mas a de uma mesquita. Reconheço, é claro, que nos breves segundos que durou esta minha espécie de miragem a partir do quadro de Goya houve muito, quase tudo, de devaneio. Mas o importante era outra coisa: era a fragrante similitude essencial. Era o inesperado, mas justificado efeito, de uma produção da BBC acerca de um quadro oitocentista.
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Avante
Nº 1680
09.Fevereiro.2006
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1 comentário:

Miliandre Garcia disse...

Olá!
Numa navageção pela internet, acabo de me deparar com seu texto sobre a série "A vida íntima da obra-prima", sobre o episódio do Fuzilamento do Goya.
Mas gostaria de entender melhor seu ponto de vista sobre a série, afinal ela é ruim porque gera uma expectativa de descobrir intimidades que não existem ou talvez não tenham importância (mais pelo título, do que pelo conteúdo) ou ela é ruim como um todo (título, forma e conteúdo)?
Pergunto porque assisti a esse episódio e encontrei o blog justamente porque queria assistir de novo e, na época, gostei da análise formal do quadro, bem didática, mas com algum interesse, assim como de saber dados históricos do evento de 2 de maio, por exemplo de que os personagens eram reais e sabe-se disso porque as famílias deles entram com processo de indenização pelas mortes.
Enfim, se puder esclarecer seu ponto de vista, agradeço muitíssimo.
A propósito, assisti à série exibida pela TV Escola, no Brasil, que também como a "2", transmite a sensação de solidão pelo público restrito e, pior que a "2", a transmissão é medonha, tanto a imagem quanto o som.
Obrigada por falar da série.
Abraço.
Miliandre