Discurso de Lula da Silva (excerto)

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domingo, 25 de novembro de 2012

Ana Vaz Milheiro - Viagem à arquitectura portuguesa da Guiné-Bissau





Viagem à arquitectura portuguesa da Guiné-Bissau

Guiné-Bissau, 2011 é um livro sobre uma viagem que Ana Vaz Milheiro, crítica do PÚBLICO, fez ao país africano à procura da arquitectura do Estado Novo. A autora escreveu uma versão para o jornal
O “largo” da Sé, desenhada por João Simões ainda em 1945 AVM




Na perspectiva do arquitecto, a viagem nunca é um tema inocente. No caso de Bissau e da Guiné, a viagem pode significar o encontro com uma arquitectura muito particular: uma arquitectura mal-amada e proscrita dos manuais que abordam o extraordinário surto da arquitectura de perfil moderno nos actuais países africanos que falam português.
Fui à Guiné-Bissau à procura da arquitectura do Estado Novo. A viagem decorreu entre 3 e 10 de Outubro de 2011 e acompanharam-me Eduardo Costa Dias, sociólogo e visita constante na Guiné desde a independência, e Paulo Tormenta Pinto, arquitecto e estreante no país, como eu. Até ao desembarque, a imagem que tinha da Guiné-Bissau baseava-se nas pesquisas iniciadas três anos antes. Faltava o confronto com a cidade “real”. Na madrugada de 3 de Outubro, alojámo-nos na pensão Creola. A viagem levou-nos ainda a Safim, Empada, Nhabijões, Bafatá, Gabu, Sonaco, Contuboel, Bula, Canchungo, Cacheu e Mansoa.
A arquitectura que procurava foi produzida durante o regime do Estado Novo por arquitectos sediados em Lisboa e que trabalham para o Ministério das Colónias (depois de 1951, Ministério do Ultramar) como funcionários públicos. Nomes que raramente se citam e que correspondem a visões mais conservadoras, como João Aguiar, Lucínio Cruz, Eurico Pinto Lopes ou Mário de Oliveira, até aos “quase modernos”, casos de João Simões, Fernando Schiappa de Campos, Luís Possolo, António Seabra, António Sousa Mendes, Emília Caria, António Moreira Veloso, Alfredo Silva e Castro.
Todos trabalharam para a Guiné. Mas é esta arquitectura, para lá de algumas estruturas fortificadas mais antigas (casos do fortim e Cacheu ou do forte de Amura, em Bissau), do edificado de sabor oitocentista (presente em Bafatá, por exemplo, ou na antiga capital Bolama), e dos equipamentos promovidos pela Primeira República, a expressão dominante.
Percorrer Bissau, capital desde 1941, é visitar uma cidade jardim africana que mantém intacta a escala doméstica, ou melhor, uma City Garden nos Trópicos. Sucessivos bairros residenciais foram dando à cidade o perfil que hoje ostenta, desde o primeiro bairro de inspiração deco, composto por um conjunto de casas cúbicas para funcionários públicos erguidas antes de 1945, com terraços visitáveis, passando pelas casas construídas pelo arquitecto Paulo Cunha em 1946 (hoje figura quase omitida pela historiografia de arquitectura, mas personagem central na realização do famoso Congresso de 1948), terminando no bairro com casas de dois pisos para os funcionários dos Correios. A cidade é portanto um laboratório de habitação de promoção pública construída entre o final da Segunda Guerra e a década de 1960.
Menos visíveis, porque em zonas periféricas e portanto sujeitas a maiores transformações, são as experiências no domínio da casa para as populações africanas realizadas pelos arquitectos que trabalham a partir de Lisboa e que se iniciam no final dos anos de 1950. Levantamentos sobre a casa guineense, nas suas diversas configurações étnicas, são conhecidos desde 1948. Orlando Ribeiro, em missão geográfica pelo território, em 1947, também se interessou pelo assunto.
Mas os arquitectos propõem, na sequência dos seus próprios estudos, novos bairros e casas (melhoradas em termos de organização funcional, mas realizadas em sistema de auto-construção). A casa é então, e segundo defendem, um “meio civilizador” e portanto central. Facilmente reconhecível é o bairro de Santa Luzia, uma das primeiras experiências em alojamento para africanos impulsionadas pelo Estado Novo e, mais tarde, o bairro da Ajuda, erguido na década de 60. Este último destina-se aos desalojados do incêndio que, no início de 1965, destrói parte dos assentamentos informais que circundam a capital da Guiné. Em 1968, estão já terminadas 140 casas, ocupando um rectângulo de 300 por 700 metros. É traçado pelos serviços das Obras Públicas guineenses. Os fundos são angariados localmente e os trabalhos contam com o apoio das forças militares que, em plena guerra colonial, procuram cativar as populações.
Uma avenida de 1919
Mas se a arquitectura doméstica representa um capitulo extraordinário da fase final da colonização portuguesa, Bissau constitui um exemplo paradigmático do que é a estratégia urbanizadora que o Estado Novo empreende a partir do fim da Segunda Guerra. Em todas as cidades africanas, dependendo naturalmente da sua escala e hierarquia no sistema colonial, é implementado um conjunto de equipamentos que complementam as estruturas habitacionais.

Os equipamentos cobrem todos os programas que definem um lugar urbano: hospitalar e assistencial, educativo, desportivo e recreativo, religioso e de representação do poder político. Em Bissau, o plano da cidade implementado em 1919, ainda durante e Primeira República, da autoria do engenheiro de minas José Guedes Quinhones, deixa como legado urbano a estrutura viária e a indicação da localização dos principais equipamentos (já um “zonamento” na visão dos urbanistas). O plano de Quinhones lê bem o território, desenhando um eixo viário que liga a zona baixa do porto a um ligeiro promontório, onde se situa a actual praça dos Heróis Nacionais. Ao longo desta avenida — hoje com o nome de Amílcar Cabral — implantam-se os principais edifícios: tribunal, sé catedral (monumento cristão numa sociedade predominantemente muçulmana e animista), sede dos Correios (com mercado nas traseiras, destruído por um incêndio em 2006), e a União Desportiva Internacional de Bissau, culminando na velha praça do Império, de implantação circular. Em torno desta praça, erguem-se quatro edifícios expressivos das diferentes fases do Estado Novo: as ruínas do Palácio do Governo (que em breve os chineses transformarão), de expressão monumental e historicista; a sede moderna do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, criado em 1956 por Cabral, Aristides Pereira e Luís Cabral), desenhada por Jorge Chaves no final dos anos de 1940; o museu, seu contemporâneo, projectado pelos arquitectos do Gabinete de Urbanização Colonial; e a sede da TAP, já dos anos dos 1970, do arquitecto José Pinto da Cunha, então fixado em Luanda.
Alguns edifícios guardam memórias extaordinárias. O Palácio do Governo, por exemplo, ocupa exactamente o lugar que Guedes Quinhones terá imaginado no plano de 1919. Preside à antiga Praça do Império. Insere-se numa arquitectura de representação política que começa a ser aperfeiçoada na segunda metade da década de 40 e que se estende do “Portugal europeu” ao “Portugal africano e asiático”. As suas fachadas conhecem muitas versões. Os responsáveis pelo edifício actual, delineado em 1945, são João António Aguiar e José Manuel Galhardo Zilhão. É bombardeado na guerra de 7 de Junho de 1998. Contemporânea é a actual Sé, urdida por João Simões ainda em 1945, em plena génese do Gabinete de Urbanização Colonial. É um edifício que se aproxima da primeira abordagem que os arquitectos do Estado Novo tentam em África: a elaboração de um estilo original para os Trópicos, sem abdicar dos temas da arquitectura tradicional portuguesa. Preferem, por afinidade climatérica, o sul.
Pequenas Bissaus
Sair de Bissau é perceber como a cidade foi replicada em outras vilas e aglomerados guineenses. A operação intensifica-se com as comemorações do 5º centenário que, em 1946, em pleno governo de Sarmento Rodrigues, celebram a presença portuguesa nesta região africana. Cacheu, Mansoa, Gabú, Canchungo, São Domingos, Farim, Fulacunda, Bolama, Bubaque, Catió e Bafatá estão entre as povoações melhoradas. O engenheiro Eduardo José de Pereira da Silva assina, enquanto chefe da Repartição Central dos Serviços Geográficos e Cartográficos da Guiné, este conjunto de planos urbanos, depois publicados no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.

Nestes aglomerados, traçados ortogonais tornam as estruturas urbanas mais complexas, admitindo-se igualmente pequenas praças arborizadas, apetrechadas com equipamentos de lazer e parques infantis. A intervenção pode concentrar-se numa nova avenida, como acontece em Bafatá, cidade natal de Amílcar Cabral, ligando a zona baixa da cidade preexistente às áreas de expansão; configurar uma ampliação, como em Mansoa, onde se alarga a quadrícula existente e a nova avenida funciona como um novo centro de tipo boulevard (que alberga a central eléctrica, a escola, o posto sanitário, duas caixas de água e duas residências administrativas); ou corresponder a uma nova fundação, alterando-se a toponímia local para outra de inspiração metropolitana (Gabú passa a Nova Lamego; Canchungo passa a Teixeira Pinto, por exemplo).
Em Gabú, a quadrícula da cidade presta-se a uma maior disseminação dos equipamentos principais. Já em Canchungo, a avenida centraliza o investimento: residência oficial, administração e posto de correios formalizam a “praça” de representação; escola, depósito de água, casas de funcionários, igreja, estruturas de saúde, distribuem-se ao longo do eixo.
A Guiné assiste assim à disseminação de um padrão “desenvolvimentista” assente num modelo urbano. Em Cacheu, núcleo fundado cerca de 1588, que entra em decadência durante o século XIX, é aberta a actual Avenida do 4º Centenário (celebrado pós-independência em 1988), lateral ao núcleo histórico e ao forte. A nova avenida termina num largo, sobre o rio Cacheu, que nos anos de 1960 recebe um padrão das comemorações henriquinas (implantado também em outras antigas províncias portuguesas ultramarinas). A escala da avenida distancia-se quer das preexistências quer das novas construções. Casas de funcionários, igreja ou sede do governo mantêm uma aparência modesta. O facto aumenta ainda mais o caracter expectante que a cidade comunica. Deste modo, a estrutura urbana permanece como um elemento à espera de ser ocupado. A exemplo das restantes cidades guineenses, esta avenida monumental compõe, na verdade, o cenário ideal às visitas de estado dos representantes do regime, como a viagem presidencial que Craveiro Lopes cumpre em 1955. Durante a década de sessenta, o conflito armado determina a escala alcançada pelos equipamentos nas regiões mais directamente ligadas ao esforço militar. Consolidam-se as instalações hospitalares, aquartelamento ou clubes militares. Mas a actual estrutura das cidades desenha-se antes e a principal avenida que as organiza monta os tais cenários adequados às festividades que comemoram o poder colonial. Mas também é são desenhos de chão que urbanizam o futuro.

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