por Cloves Geraldo*
Bandeira rasgada no Iraque
Paul Haggis expõe em seu filme as fraturas americanas da ocupação do Iraque, a partir da busca que um ex-combatente no Vietnã empreende para encontrar seu filho, soldado, desaparecido depois de voltar de Bagdá
Variação de filme policial de quartel, “No Vale das Sombras”, do canadense Paul Haggis, usa situações comuns a obras que mostram personagens desinteressados evoluir para modificar suas impressões iniciais. Suas jornadas incluem mudança interior e descoberta da realidade circundante, a ponto de se transformar a si próprios. Quando isto ocorre o espectador muda com eles e todos ganham com a visão lhes são passadas. Em “No Vale das Sombras”, referência ao Vale de Elah, onde se deu o confronto entre Davi e Golias, e também à guerra dos Estados Unidos contra o Iraque, dois personagens se interinfluenciam e mudam sua relação preconceituosa e negligente sobre minorias raciais e pessoas sob perigo familiar. Dito desta maneira; seria um filme a mais sobre os temas citados. Mas não é bem assim.
Paul Haggis, roteirista de “Menina de Ouro”, de Clint Eastwood, é diretor do ótimo “Crash – No Limite”, sobre racismo. Em “No Vale das Sombras”, ele não se afasta deste tema e lhe acrescenta outra preocupação: o que fazem os soldados americanos, de fato, no Iraque? É então que os entrechos acima mudam e tornam seu filme diferente. Ele usa situações conhecidas para ir desmontando preconceitos, inclusive do público, acostumado a identificar em negros, latinos, árabes e asiáticos como vilões em filmes e na vida real. No início da história o ex-sargento da polícia militar, aposentado, Hank Deerfield (Tommy Lee Jones) chega a uma base militar no Novo México para encontrar o filho Mike (Jonathan Tucker), mas não o encontra. Uma situação com a qual qualquer um se identifica: um pai dedicado em busca do filho, do qual não tem notícia.
Cotidiano em delegacia americana é desanimador
Não se trata, no entanto, de uma busca qualquer. Mike havia regressado do Iraque, onde cumpriu seu período de combate e deveria visitar a família, em Menphis, no Tennessee. A pergunta que surge é: por que, afinal, ele sumiu? Tem-se, a partir daí, o fato-motivador da ação, tão comum neste tipo de enredo. Sabe-se, desde então, que Hank partirá em busca do filho. E de forma linear, sem idas e vindas, pois, diferente de “Crash – No Limite”, cheio de núcleos e histórias que se interpenetram, em “No Vale das Sombras” temos um único núcleo, com apenas uma variação: a da delegacia de polícia civil, onde trabalha a detetive Emily Sanders (Charlize Theron). A intervelos intervém, também, a esposa de Hank,Joan (Susan Sarandon), choramingando e temerosa de que o pior possa ter acontecido. Uma situação, portanto, de fácil assimilação para o espectador.
Haggis, porém, acrescenta detalhes, pontos que, a princípio, nada têm com a trama central propriamente. Hank tenta, a todo instante, contextualizar o vídeo que Mike lhe enviou. As imagens digitais se embaralham, vozes não se completam. Ele não consegue entender o que há, afinal, naquela mensagem digital, vinda do Iraque. Percebe-se apenas que ele procura nela alguma mensagem concreta do filho. E, assim, ele chega à delegacia onde trabalha Emily. É um dia comum, de prisões, depoimentos e de gente aterrorizada com ameaças, fatos conhecidos por ele. O olhar de Haggis sobre este cotidiano de delegacia é que faz a diferença. Emily ouve uma jovem, ameaçada como o filho, pelo marido açougueiro, que a quer retalhar. Seu superior e dois outros detetives zombam da mulher e dela, sem nenhum pudor, e ela mesma trata a jovem com desdém, vendo em seu caso apenas a ameaça ao gato de estimação da família.
Contraponto entre eficiência e violência e negligência e legalidade
Negligência, desinteresse, galhofa. Para que se paga à polícia? Afinal, é para ter interesse sobre os conflitos reais ou imaginários dos cidadãos. E ela pouco se dá ao que se passa a seu redor. Não é diferente do que se passa no Brasil e em outras partes do mundo. É esta polícia que irá mergulhar, depois, na busca de Hank. Tem-se, desta forma, o que virá pela frente: policiais civis negligentes e uma jovem detetive que não sabe avaliar a dimensão de um crime. Quando isto acontece, Hank se transforma. Zangado, irritado, vai mostrando os métodos de um velho policial, que prima pela violência e o desrespeito aos métodos legais. E nem por isto se revela incompetente, sabe identificar detalhes que escapam a Emily. Mas não aos demais policiais que, no início tratam do caso. Cada guarnição joga a bomba para a outra e deixam o caso naufragar.
Como se vê, Hank, policial à antiga, entra em choque com os novos policiais. Teoricamente mais bem preparados. Há nele um senso de dever, o olhar apurado para os rastros, as marcas, os pequenos detalhes que apontam para um rumo e não para o que querem lhe fazer crer ser o verdadeiro. Haggis põe assim duas gerações de policiais, Hank, que esteve na Guerra do Vietnã, e Emily que não esteve em guerra alguma. Ela é aparvalhada, sem faro, segue apenas o que lhe mandam. Com Hank irá adquirir vida própria. Ele a vai libertar de sua visão por demais burocrática e de manual. Hank, por seu lado, a cada passo em busca do que aconteceu com seu filho, revela outro lado da classe média americana: mesmo vivendo num país multirracial, vê os mexicanos (chicanos para eles), como a razão dos males dos EUA.
Haggis discute a razão da permanência no Iraque
Não enxerga em seu filho, Mike, alguma falha, deficiência, fraqueza. É só o seu garoto, que foi defender a pátria, como ele fez ao ir para o Vietnã. O verdadeiro Mike também irá se revelar ao longo de sua epopéia. Ele a busca no vídeo e ela aparece à medida que surgem os amigos do filho, os que estiveram com ele no Iraque. Como a maioria dos cidadãos comuns americanos, não consegue ver diante de si o moto que poderia ter levado Mike para além de seu cotidiano de soldado. Afinal o que fazia mesmo ele no Iraque. É disto que Haggis trata no filme. Qual o motivo da permanência dos EUA em Bagdá? O que aqueles jovens, bem intencionados na visão de Hank, faziam tão distante de casa? Para Hank, servindo à pátria. Mas Haggis diz, a todo instante, que não é bem assim.
Quando, no instante em que Hank parece, junto com Emily, ter solucionado o caso, todo seu racismo surge. Ele não enxerga o jovem soldado, apenas o mexicano Robert Ortiez (Victor Wolf). Atira-se sobre ele, esmurra-o, quase o mata. Ortiez e seus compatriotas mexicanos, que não são mais latinos apenas, mas mexicano-americanos, são, em sua visão, a razão dos males dos EUA. Justo eles, mão-de-obra barata, sustentam a economia dos EUA, com os baixos salários que ganham, são acusados da decadência americana. Hank, não é, assim, um personagem dos mais simpáticos. Está sempre se insurgindo contra algo, pelo filho, sem saber que, com isto, desmonta a sua própria crença e se transforma num ser diferente e, portanto, melhor. E leva consigo a insegura e inexperiente Emily pelas catacumbas do vale das sombras do Iraque, plantadas no sul dos Estados Unidos. Amplia de tal forma a visão da moça que ela passa a ser, como em “Silêncio dos Inocentes”, em que Hannibal investiga os crimes através da detetive Starling, o corpo que ele guia pelos corredores dos quartéis.
Imagem de filho certinho se desmancha para o pai
Os soldados que ambos encontram são jovens demais. Suas ações pela noite, bares, clubes de strip-teases são corriqueiras. Vivem num mundo onde a diversão tem o mesmo impacto violento do campo de batalha. Aprenderam a matar, e são capazes de usar essa capacidade de eliminar o outro sem piscar. Ao revelar este outro lado, de forma tão suave, aparentemente sem qualquer ligação com a história que se desenrola na tela, Haggis leva o espectador a pensar só na relação pai e filho. O que, afinal, Mike queria dizer a seu pai? E que tipo de homens são os jovens soldados que são capazes de se brutalizar, compreende, aos poucos, Hank. Emily, não, está mais interessada no confronto que é obrigada a ter com a estrutura das polícias civil militar e do exército. Cada um a seu modo esconde-lhe o jogo, e ela, salva pela mão-guia de Hank, não tem aonde se socorrer. Mas ele, com seu aguçado senso de investigação, boa percepção das mutações das cores, da luz e das pegadas humanas; torna-a sua parceira ideal.
Este duplo jogo, em que Hank e Emily escorram um no outro, avança até o rompimento que Haggis faz na narrativa. O que era assessório passa a ser o principal. E a parafernália tecnológica faz sentido. Desvenda o que estava escondido. Toda a brutalidade da guerra dos EUA contra o povo iraquiano se revela. O castelo criado por Hank em torno do filho, Mike, se desmancha. O espectador relembra os episódios de Abu Gharab, com a soldado montada no combatente iraquiano nu, os corpos de civis estilhaçados, os escombros de milhares prédios e os milhões de refugiados perambulando de uma região à outra sem paz. Sem fazer sentido para Hank. O seu menino não é mais o seu menino, é algo assustador. No que o transformaram. A estrutura de filme policial de quartel, com os oficiais se revelando assassinos ou cúmplices destes, se desmonta. Trata-se de um filme-denúncia, contra a ocupação do Iraque, e no que se transformaram os jovens soldados americanos: apenas assassinos.
Culpa no filme é Bush e o sistema
A cena em que, enfim, Haggis expõe sem meios tons sua visão dos desmandos de Bush no Iraque (e por que não, no Afeganistão?), justifica toda a trama, com a aparência de uma obra que vai pelos meandros da investigação e do suspense, para, no final, revelar o culpado. O culpado aqui é o sistema, que tornou feras os jovens soldados americanos, com o mínimo senso de humanidade. E Hank, cujos preconceitos foram às raias da demência se vê obrigado a retroceder: os fatos e as pessoas, mesmo sendo latinos, não combinam com a imagem e a idéia que se forma deles. Hank é agora outra pessoa, menos ácida, mais compreensiva e disposta a perdoar, a conviver e a tolerar. E Emily não mais vê seus chefes como seus superiores, mas como homens capazes de fazer tudo para preservar seus cargos. Admite, até, algumas fantasias com o filho. O mesmo ocorre com o espectador. É como se Haggis dissesse ao público americano: olhe, não estamos ganhando guerra alguma, estamos é brutalizando e assassinando crianças, no Iraque.
Este tipo de filme, político em sua essência, mostra a virada do cinema americano, disposto a dialogar com seu público sobre o papel dos EUA no Oriente Médio. Não é uma guerra patriótica, contra o suposto “terrorismo”, mas contra o povo iraquiano, para apossar-se de suas reservas de petróleo e tentar dominar uma região importante para a sobrevivência da economia do 1º Mundo. Para isto vale tudo, aterrorizar o povo iraquiano (e para não dizer afegão, palestino, libanês, etc.), dizimar aldeias inteiras, inclusive fazer de crianças alvo de pegas com carros de patrulha. Saí-se do cinema com a idéia clara de que a cumplicidade da classe média americana, simbolizada por Hank, custou a vida de seus próprios filhos.
Bandeira não simboliza a glória mas a desonra
Quando a bandeira americana é hasteada na casa de Hank, depois de seu retorno, ela está rasgada, descorada, com as estrelas pálidas. Tremula no alto do mastro, mas sem nenhuma glória. É uma imagem que fala muito sobre o que acontece com o país em relação ao Iraque: não há nenhuma glória em dizimar um povo para mantê-lo sobre seu domínio. Hank sabe o que isto significa: aquela é a imagem real de seu país, todos devem vê-la. Ele mudou a tempo de percebê-lo. E também o público que assiste a “No Vale das Sombras”, mais interessado na escaramuça policial do que nos meandros e subtemas do filme, que leva, enfim, um choque ao descobrir que o filme não é sobre a busca, em si, mas a respeito da formação de matadores, não guerreiros, que, na ociosidade e na falta do “Inimigo real”, não fabricado, caso dos árabes, massacra a si próprio.
“No Vale das Sombras” (In the Valley of Elah). Policial/Guerra. Roteiro: Paul Haggis, baseado em história de Mark Boal e Paul Haggis(*). Direção:Paul Haggis. Elenco: Tommy Lee Jones, Charlize Theron, Jason Patrick, Suisan Sarandon, Wes Chattan (Steve Penning).
(*) Filme é baseado em reportagem “Death and Dishonor” (Morte e Desonra), de Mark Boal, publicada na revista Playboy.
*Cloves Geraldo, Jornalista
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