4 de Março de 2013 - 11h29
Ele esperou até 1992 para deixar os hábitos de monge franciscano e abandonar o monastério onde vivia. A essa altura já havia atravessado uma experiência impactante: no dia 7 de setembro de 1984, o chefe da antiga Inquisição, hoje chamada de Congregação para a Doutrina da Fé, o colocou no mesmo assento que ocuparam o teólogo Giordano Bruno e o astrônomo Galileu Galilei.
Por Martín Granovsky, Página 12
montagem redação Vermelho
O inquisidor era o cardeal Joseph Ratzinger, então braço direito doutrinário de João Paulo II e depois Papa a partir de 2005 até a última quinta-feira (28). O interrogado era o brasileiro Leonardo Boff.
Boff não foi queimado vivo como Giordano nem foi obrigado a pedir perdão como Galileu. Mas, em 1985, Raztinger o condenou ao silêncio e, desde então, as hierarquias eclesiásticas dificultaram cada vez mais a chance de expressar suas ideias com liberdade. Depois de Igreja, Carisma e Poder, o livro que o levou diante de Ratzinger, cada novo trabalho encontrava obstáculos para sua publicação em editoriais ou revistas obrigadas a pedir permissão às autoridades da Igreja católica.
Nos últimos dias, durante o debate sobre o futuro da Igreja em função do impacto da renúncia do Papa, Boff recordou em seu blog (http://leonardoboff.com ) que ele foi “colocado na mesma banqueta de Giordano e Galileu”. Ler essa frase provoca uma perplexidade: Foi, realmente, o mesmo banco? Era possível que a mensagem da Santa Sé para demonstrar autoridade fosse transmitida com uma nitidez tão crua? O Página/12 decidiu fazer essas perguntas diretamente a Boff.
Esta foi sua resposta, enviada por email: “Fui julgado no prédio que fica à esquerda da grande praça para quem vai na direção da basílica (de São Pedro). Há séculos que é a sede da Congregação para a Doutrina da Fé, ex-Santo Ofício e ex-Inquisição. É um edifício grande, escuro, com três pisos ou mais. Teve um processo doutrinário com todos os requisitos jurídicos. Eu me sentei onde todos os julgados pela Inquisição foram julgados. Ali sentaram Galilei Galilei, Giordano Bruno e outros. Não estou jogando com metáforas, mas sim com a realidade”.
Inquisidor e condenado se conheciam bem. O teólogo brasileiro nascido em 1938 estudou em Munique e Ratzinger, então um sacerdote de mente aberta, era conferencista. Talvez por isso ou por simples pudor – é difícil de acreditar, mas no mundo tem gente que vivem sem olhar o próprio umbigo -, Boff jamais deixou de criticar Bento XVI por suas ideias e atos, mas nunca travou esse debate em termos pessoais. E uma vez, há três anos, chegou a ser até profético.
Boff falou à revista IstoÉ, em 28 de maio de 2010, segundo pode se ler: “O Papa, para seu próprio bem e da Igreja, deveria renunciar. Devemos exercer a compaixão. É um homem doente, velho, com problemas próprios da idade e com dificuldades para a administração, porque é mais professor do que pastor. Por esse motivo faria bem em ir para um convento rezar sua missa em latim, cantar seu canto gregoriano que tanto aprecia, rezar pela humanidade que sofre, especialmente pelas vítimas da pedofilia, e se preparar para o grande encontro com o Senhor da Igreja e da história. E pedir misericórdia divina”.
Os dois anos que se passaram entre a opinião de Boff e o helicóptero de Ratzinger são um lapso curto para os ritmos vaticanos. O certo é que depois desse tempo, Ratzinger se converteu em Papa emérito e, em seguida, predicará em um convento.
Giordano e Galileu
Campo de Fiori é a única grande praça de Roma sem igreja. A vinte quadras do Vaticano e muito perto de Piazza Navona, pela manhã funciona um mercado. Senhoras vestidas de preto que parecem recém chegadas do campo vendem fruta, massa seca e verduras, brócolis romano, de cor verde clara e odor suave, ou brócolis siciliano, escuro e mais forte, que se come aqui. À tarde, as pizzarias e restaurantes das ruas laterais ficam cheios e, no lugar das matronas, estão os turistas de vinte e poucos anos que comem penne regate e, sobretudo, bebem cerveja como se fosse a última vez.
As senhoras da manhã e os meninos da tarde vivem sua vida alheios à estátua que está sobre o pavimento de Campo de Fiori. Mostra um monge alto e ligeiramente encurvado. O escultor Etore Ferrari deu a ele um rosto com gesto decidido e arrumou as dobras da batina de modo que elas parecem seguir se movendo. Abaixo, uma frase em italiano: “A Bruno – Secolo da lui divinato, qui dove il rogo arse”. A tradução: “O século que ele adivinhou (está) aqui, onde o fogo ardia”.
Em 1600, o napolitano de 52 anos que havia sido frei dominicano foi queimado pela ordem da Santa e Geral Inquisição no mesmo lugar onde hoje está a estátua. O queimaram vivo por heresia. “Tremeis mais vós ao anunciar esta sentença do que eu ao recebê-la”, disse um pouco antes de morrer. Entre outras ideias sustentou a centralidade do sol, como Copérnico, e desafiou a centralidade do papa. Jamais, nos 413 anos que se seguiram à sua execução, a hierarquia da Igreja pediu perdão ou voltou a incluí-lo de alguma maneira em seu seio.
A instalação da estátua foi ela mesma uma grande batalha no século XIX. Promovida por personalidades de toda a Europa, desde Vitor Hugo até Mikhail Bakunin, a homenagem a Giordano Bruno só se configurou no monumento de Campo de Fiori em junho de 1889. E o Papa de então, Leão XIII, inclusive ameaçou afastar-se ostensivamente de Roma neste dia. Só se absteve de fazê-lo quando o governo italiano o advertiu que se deixasse a cidade era melhor que não voltasse.
Trezentos anos antes dessa polêmica, na Inquisição, o julgamento foi conduzido pessoalmente pelo cardeal Roberto Belarmino, o mesmo que obrigou Galileu Galileu a se retratar do heliocentrismo em 1616 para não acabar torturado e incinerado como Bruno.
O pontífice, sumo
Belarmino não era um simples chefe de torturadores, mas sim um teórico fino e um sutil funcionário da Santa Sé. Em seu Tratado sobre o poder dos sumos pontífices nos assuntos temporais, de 1610, disse que o papa pode se opor a quem politicamente possa colocar em perigo a cristandade. E meio à crise da Igreja e ao nascimento da Reforma protestante, Belarmino atualizou assim a doutrina do papa Gregório VII que, em 1075, deu o grande giro na construção da Igreja como monarquia absoluta quando estabeleceu que ao pontífice “é lícito depor os imperadores”, que tem o direito exclusivo de depor ou recolocar bispos e que “pode eximir os súditos da fidelidade até aos príncipes iníquos”.
O investigador Jean Touchard escreveu em seu livro clássico, “História das ideias políticas”, que “o movimento iniciado por Gregório VII é irreversível”. E explicou: “A centralização romana e a refundação administrativa (com a organização da Cúria, que é seu principal elemento) farão do bispo de Roma o Soberano Pontífice, dignidade ou autoridade que os papas dos séculos precedentes nunca conseguiram assegurar de forma duradoura”.
Depois que Boff se sentou pela última vez no assentou de Giordano e Galileu, a Congregação para a Doutrina da Fé seguiu trabalhando, até que um ano depois pediu que ele ficasse em silêncio. A notificação dos inquisidores a Boff está disponível na internet e pode ser consultado neste endereço: http://bit.ly/YEk3j0 .
Vale a pena o esforço de ler alguns parágrafos inteiros, onde uma visão teológica aparece como um modo de respaldar a construção do poder supremo do Vaticano desde Gregório VII e Belarmino até o último período de João Paulo II (papa que teve Ratzinger como inquisidor) e Bento XVI. Boff, ao contrário, teria cometido o pecado de cair em “uma concepção relativizante da Igreja”, a partir das “críticas radicais dirigidas à estrutura hierárquica da Igreja Católica”. Os parágrafos:
“A única fé do Evangelho cria e edifica, através dos séculos, a Igreja Católica, que permanece una na diversidade dos tempos, diferentemente das situações que caracterizam as múltiplas igrejas particulares.”
“A Igreja universal se realiza e vive nas Igrejas particulares e estas são Igreja, permanecendo precisamente como expressões e atualizações da Igreja universal em um determinado tempo e lugar. Assim, com o crescimento e progresso das Igrejas particulares cresce e progride a Igreja universal; enquanto que, com a atenuação da unidade, diminuiria e faria decair também a Igreja particular”.
“Por isso, a verdadeira reflexão teológica nunca deve se contentar somente em interpretar e animar a realidade de uma Igreja particular, mas sim deve tratar de penetrar os conteúdos do sagrado depósito da Palavra de Deus, confiado à Igreja e autenticamente interpretado pelo Magistério”.
“A práxis e as experiências, que surgem sempre de uma situação histórica determinada e limitada, ajudam o teólogo e obrigam a tornar acessível o Evangelho a seu tempo. No entanto, a práxis não substitui a verdade nem a produz, mas sim está a serviço da verdade que nos foi entregue pelo Senhor”.
“L. Boff se situa, segundo suas palavras, dentro de uma orientação na qual se afirma ‘que a Igreja como instituição não estava no pensamento no Jesus histórico, mas sim que surgiu como evolução posterior à ressurreição, especialmente com o progressivo processo de desescatologização’”.
“(p. 129) Por conseguinte, a hierarquia é, para ele, “um resultado da terrena necessidade de se institucionalizar”, “uma mundanização” ao “estilo romano e feudal” (p.70). Daí se deriva a necessidade de uma ‘mudança permanente da Igreja (p. 112); hoje deve surgir uma “Igreja nova” (p. 110 e seguintes), que será “uma nova encarnação das instituições eclesiais na sociedade, cujo poder será simples função de serviço” (p. 111).
“Não resta dúvida de que o Povo de Deus participa na missão profética de Cristo (cf. LG 12); Cristo realiza sua missão profética não só por meio da hierarquia, mas também por meio dos laicos (cf. LG 35). Mas é igualmente claro que a denúncia profética na Igreja, para ser legítima, deve estar sempre ao serviço da edificação da própria Igreja. Não só deve aceitar a hierarquia e as instituições, mas também cooperar positivamente para a consolidação de sua comunhão interna; além disso, o critério supremo para julgar não só seu exercício ordenado, mas também sua autenticidade, pertence à hierarquia (cf. LG 12).”
LG é Lumen Gentium, Luz dos Povos, uma das constituições emanadas do Concílio Vaticano II, que se reuniu entre 1962 e 1965 e atualizou a Igreja, Ratzinger foi um de seus secretários. Boff relacionou o Concílio com a Teologia da Libertação que, nos anos 60, foi abraçada por muitos sacerdotes, religiosos e laicos no mundo e na América Latina. Segundo consta na notificação da Congregação para a Doutrina da Fé, na sessão de 1984, com Boff, Ratzinger foi assistido por um argentino, Jorge Mejía, que havia sido diretor da revista católica argentina Criterio.
A era do gelo
Em 1992, quando deixou a batina porque sentiu que estava se chocando, segundo suas palavras, “contra uma muralha”, Boff disse que “a forma atual de organização da Igreja (que nem sempre foi a mesma na história)” cria e reproduz desigualdades”.
Quando a Congregação o citou, Boff buscou e obteve a cobertura pastoral de dois cardeais, o arcebispo de Fortaleza, Aloisio Lorscheider, e o arcebispo de São Paulo, Paulo Evaristo Arns, ambos franciscanos e simpatizantes da doutrina de opção pelos pobres. A sanção a Boff pode ter sido também uma resposta a este grupo de bispos brasileiros. A história posterior talvez seja uma prova de que a mensagem tinha múltiplos destinatários, porque nenhum deles foi substituído por bispos da mesma linha, mas sim por conservadores.
Na quarta-feira passada, outro teólogo, o suíço Hans Kung, uma figura chave para os teólogos da libertação, escreveu no The New York Times uma coluna na qual se perguntava ser era possível uma primavera vaticana.
Kung, que foi companheiro de estudos de Ratzinger e trabalhou com ele como teólogo no Concílio há cinquenta anos, assinalou que o Vaticano pode ser comparado a outra monarquia absoluta, a Arábia Saudita, ainda que esta tenha somente duzentos anos de vida. Também mencionou três reformas de Gregório VII para conformar o “sistema romano”: um papado “centralista-absolutista”, “um clericalismo compulsivo” e “a obrigação do celibato para sacerdotes e outros membros do clero secular”.
Nem sequer o Concílio Vaticano II, segundo Kung, limitou o poder da Cúria, “o corpo de governo da Igreja”. E nos papados de João Paulo II e Bento XVI houve, além disso, “um retorno aos velhos hábitos monárquicos da Igreja”.
Apesar de que, como símbolo, o Papa tenha dialogado quatro horas com Kung em 2005, “seu pontificado esteve marcado por colapsos e más decisões”. Por exemplo, “irritou as igrejas protestantes, os judeus, os muçulmanos, os índios da América Latina, as mulheres, os teólogos reformistas e os católicos partidários de uma reforma”. E reconheceu a Sociedade de São Pio X, dos seguidores do arcebispo ultraconservador Marcel Lefebvre, do mesmo modo que fez com o bispo Richard Williamson, um negador do Holocausto. Para não falar dos abusos de crianças e jovens por parte de clérigos que o Papa encobriu quando era o cardeal Joseph Ratzinger. Ou dos fatos relevados nos Vatileaks, com “intrigas, lutas pelo poder, corrupção e deslizes sexuais na Cúria, que parecem ser a razão principal da renúncia de Bento”.
Kung escreveu que “nesta situação dramática, a Igreja necessita de um Papa que não vida intelectualmente na Idade Média, que não encabece nenhum tipo de teologia, constituição da Igreja e liturgia medievais”. O papa necessário deveria voltar à democracia seguindo “o modelo do cristianismo primitivo”.
O exemplo alemão reflete algumas tensões. “Uma pesquisa recente mostra que 85% dos católicos da Alemanha está a favor de que os sacerdotes possam se casar, 79% apoiam que os divorciados possam voltar a ser casar e 75% apoia a ordenação de mulheres”, aponta Kung. Depois de se perguntar se a Igreja será capaz de convocar um novo concílio reformista ou uma assembleia de bispos, sacerdotes e laicos, Kung apresenta sua conclusão: “Se o próximo conclave eleger um papa que siga o mesmo velho caminho, a Igreja nunca experimentará uma nova primavera, mas sim cairá em uma nova era do gelo e correrá o perigo de ficar reduzida a uma seita crescentemente irrelevante”.
Neste caso, o assento de Giordano, Galileu e Boff será um vestígio tão ou mais forte que o trono de Pedro.
(Título original "Quando a inquisição colocou Boff no mesmo assento de Giordano Bruno e Galileu" alterado por redação Vermelho; tradução: Marco Aurélio Weissheimer)
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