Discurso de Lula da Silva (excerto)

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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

De modo a olharmos para a “questão social”, é importante clarificar a sua definição. Trata-se de uma expressão comummente utilizada pela historiografia, em grande medida devedora do discurso da época, que resume duas ideias fundamentais: por um lado, as condições de vida e de trabalho; e, por outro, a relação entre o poder e o mundo do trabalho. Os políticos e outros agentes reconheciam a “palpitante actualidade” destes problemas, mas a necessidade de intervenção escondia, como veremos, as profundas divergências em torno da hierarquização dos problemas a serem resolvidos – e qual a urgência da “questão social” – e a forma de o fazer, ou seja, de um modo progressivo, reformista ou radical e “revolucionário”. No período dito de propaganda, a ideia de República, multifacetada e não monolítica, teve a si associada a noção de “Nova Aurora” ou, na sua forma mais prosaica, o “bacalhau a pataco” (subsistências baratas). Arautos de uma possibilidade de regeneração da sociedade portuguesa, os republicanos entendiam-se como os únicos detentores de uma solução para a crise que o país atravessava. Os republicanos – ou parte deles, pelo menos – procuraram tecer ligações com o mundo do trabalho e os trabalhadores, entendidos como fundamentais na luta pela conquista do poder. Chamavam estes homens ao combate político e muitos deles abandonaram as suas organizações, esperançosos na aurora republicana. De entre a polifonia do movimento republicano e as diferentes situações e orientações do mundo do trabalho constituiu-se uma plataforma de entendimento e expectativas partilhadas: fosse a República um fi m ou um meio para alcançar uma sociedade mais justa, era possível um combate comum contra a monarquia constitucional. Os republicanos construíram um discurso socializante e reformista de proximidade e atenção à questão social. Estes e os trabalhadores partilharam uma visão do que poderia e deveria ser o futuro. Os trabalhadores não eram, obviamente, um grupo homogéneo, coexistindo uma miríade de situações diferentes a nível económico e social. Concentravam-se nas cidades e em bolsas industriais e, embora minoritários, a sua concentração geográfi ca, sobretudo na Grande Lisboa, conferia-lhes um importante papel social e político, tornando-os uma força a ter em consideração. Os trabalhadores, à semelhança de outros grupos e agentes políticos como os republicanos, procuravam fazer ouvir a sua voz, forçando a entrada no campo político exclusivista da monarquia constitucional. Existiam, é certo, diversos níveis de politização. De entre aqueles que começavam a pensar a sua situação e a lançar as bases para a organização das suas forças, encontramos um espectro político variado do anarquismo ao anarcosindicalismo e ao socialismo. O comunismo entrou no campo político e do movimento operário, depois da revolução russa de 1917, assomo de esperança para os trabalhadores e “pesadelo” para as classes mais conservadoras. Feita a República, com o 5 de Outubro de 1910, o mundo do trabalho tinha, portanto, expectativas elevadas em torno do que o novo regime poderia – e deveria – fazer para responder às suas reivindicações. Os trabalhadores lutavam pelo direito à organização (os agrupamentos federais e nacionais eram proibidos) e defendiam o direito à greve. Apesar do interdito legal, verifi caram-se vários movimentos grevistas no início do século XX (que não cessaram depois da implantação da República). Um dos principais temas das reivindicações era a questão da necessidade da melhoria das condições de vida e de trabalho, numa conjuntura de enormes difi culdades num mundo sem protecção social, excepto as redes de entreajuda dos próprios trabalhadores, com condições de trabalho duríssimas e vivendo, muitas vezes, em habitações miseráveis nas “ilhas” e nos “pátios” operários. Os governos republicanos manifestaram preocupação com a “questão social”, é certo, mas, na maioria dos casos, as medidas ficaram aquém das expectativas dos trabalhadores. A primeira decepção dos trabalhadores teve lugar em Dezembro de 1910, com o “decreto burla” que legalizava tanto a greve como o lock-out patronal. Apesar da promulgação de várias medidas de carácter social (por exemplo, o descanso semanal e a lei de assistência), os movimentos grevistas de 1911 e 1912, fruto de um crescendo combativo operário e do desenvolvimento do associativismo nos meios rurais, provocariam sérios embates entre o poder republicano e os trabalhadores. Foi o início de uma “guerra aberta”, com episódios de grande violência, entre os republicanos no poder e o movimento operário organizado, temperada apenas pelos breves momentos de união, quando estava em causa a defesa do regime, ou quando algumas medidas legislativas moderavam o conflito. O Partido Democrático, que mais tempo ocupou as cadeiras ministeriais durante a República, teve uma política de contenção e repressão do movimento operário – não é por acaso que Afonso Costa era conhecido pelo “racha-sindicalistas”. Um número signifi cativo de entre os republicanos não era “revolucionário” nem radical e entendia que a questão social deveria ser resolvida, mas de forma progressiva, pela via reformista. Se bem que entendessem a importância deste problema, consideravam que era mais importante consolidar o regime, que, de facto, tinha inimigos que contra ele conspiravam. Veja-se, por exemplo o caso das incursões monárquicas em 1911 e 1912, capitaneadas por Paiva Couceiro. Poderíamos fazer referência ainda aos problemas entre o poder republicano e a Igreja Católica na sequência de algumas medidas legislativas, a mais importante das quais a Lei de Separação de Abril de 1911. No governo, pretendiam de algum modo satisfazer as chamadas forças vivas, mostrando como podiam e sabiam fazer uma administração respeitável e sem demasiados “excessos”. A Primeira Guerra Mundial (1914- 1918) veio agudizar as relações entre o poder republicano e os trabalhadores organizados. A crise económica, nomeadamente a alta de preços, penalizou grandemente todos aqueles que viviam de rendimentos fixos ou que não conseguiam que os seus salários aumentassem, trazendo consigo o descontentamento das populações e o aumento da confl itualidade social, fosse através de movimentos organizados, como as greves, muitas delas organizadas pela central dos sindicatos, a União Operária Nacional, fosse através de uma espécie de motins da fome. De entre estas movimentações espontâneas, vale a pena referir os assaltos a estabelecimentos comerciais, nomeadamente a “revolução da batata” de Maio de 1917. O caso da experiência sidonista é ilustrativo da divergência entre a prioridade dada à questão política em detrimento da social. Sidónio Pais subiu ao poder depois do golpe de 5 a 8 de Dezembro de 1917, contando com a “expectativa benévola” dos trabalhadores organizados, em rota de colisão com o poder afonsista, sobretudo depois do Verão de 1917, um dos mais duros no tocante aos conflitos entre grevistas e poder republicano. Este apoio inicial do mundo do trabalho seria desbaratado pelo poder sidonista, que defendia a necessidade de revolução política, não considerando tão urgente e necessária a resolução da questão económica e social. Depois da I Guerra Um momento excepcional nas relações entre o poder republicano e o mundo do trabalho foi a entrada de um ministro socialista (Augusto Dias da Silva) para o governo, a conjuntura de Maio de 1919 e o pacote legislativo com medidas de grande importância (dia de trabalho de 8 horas e seguros sociais). Compreende-se a promulgação destas medidas na conjuntura política coeva. Em primeiro lugar, vivia-se o pós-Primeira Guerra Mundial. Os sacrifícios pedidos e feitos pela população obrigavam a um renovado interesse pela situação económica e social de sociedades destruídas e exauridas. De igual modo, a revolução russa de 1917 e os subsequentes movimentos sociais forçavam a essa atenção, sob pena de estas sociedades terem entre mãos um descontentamento impossível de manter. A nível interno, a República que afastara o sidonismo, que vencera a intentona monárquica de Monsanto e a Monarquia do Norte, contara com a participação do republicanismo radical, popular e com os trabalhadores. Nos anos de 1919 a 1926 assistimos a uma recomposição do campo político, surgindo a lume projectos de esquerda e de direita, registando-se um renovado interesse na questão social. Mas, do lado contrário, reorganizavam-se as “forças vivas”, confrontando-se, assim, dois blocos sociais antagónicos. O movimento operário esteve particularmente activo nos anos de 1919 e 1920, mas muitos autores apontam a perda do “pão político” (preço regulamentado pelo Estado) em 1923 como um sinal de enfraquecimento do movimento operário. Fazendo um balanço final da relação entre o republicanismo, o poder republicano e o mundo do trabalho, podemos pensar em encontros e desencontros entre estas duas forças políticas, sociais e culturais. Existiu sempre no republicanismo uma corrente socializante e próxima das preocupações dos trabalhadores organizados; no entanto, no poder, na maioria dos casos, os governos reagiram com dureza às movimentações dos operários. Apesar disto, a ideia de República – diferente da prática política dos governos republicanos – sobreviveu, para alguns trabalhadores, como aspiração e como ideal e por ela se bateram em momentos críticos do regime. Os republicanos precisaram dos trabalhadores na luta contra a monarquia e não poderiam tê-los como inimigos depois da chegada ao poder; mas nem sempre as prioridades republicanas estavam em consonância com as dos trabalhadores. Para se entender a República é necessário levar em linha de conta a relação complexa, muitas vezes de convergência e outras tantas confl itual, entre o republicanismo e o mundo do trabalho; esta é, sem dúvida, uma das questões centrais para a leitura e compreensão deste período. Historiadora, investigadora do Instituto de História Contemporânea


Mundo do trabalho

República: à espera de uma nova aurora

01.09.2010 - 11:34
Para se entender a República é necessário levar em linha de conta a relação complexa, muitas vezes de convergência e outras tantas conflitual, entre o republicanismo e o mundo do trabalho. Por Maria Alice Samara


De modo a olharmos para a “questão social”, é importante clarificar a sua definição. Trata-se de uma expressão comummente utilizada pela historiografia, em grande medida devedora do discurso da época, que resume duas ideias fundamentais: por um lado, as condições de vida e de trabalho; e, por outro, a relação entre o poder e o mundo do trabalho. Os políticos e outros agentes reconheciam a “palpitante actualidade” destes problemas, mas a necessidade de intervenção escondia, como veremos, as profundas divergências em torno da hierarquização dos problemas a serem resolvidos – e qual a urgência da “questão social” – e a forma de o fazer, ou seja, de um modo progressivo, reformista ou radical e “revolucionário”.

No período dito de propaganda, a ideia de República, multifacetada e não monolítica, teve a si associada a noção de “Nova Aurora” ou, na sua forma mais prosaica, o “bacalhau a pataco” (subsistências baratas). Arautos de uma possibilidade de regeneração da sociedade portuguesa, os republicanos entendiam-se como os únicos detentores de uma solução para a crise que o país atravessava.

Os republicanos – ou parte deles, pelo menos – procuraram tecer ligações com o mundo do trabalho e os trabalhadores, entendidos como fundamentais na luta pela conquista do poder. Chamavam estes homens ao combate político e muitos deles abandonaram as suas organizações, esperançosos na aurora republicana. De entre a polifonia do movimento republicano e as diferentes situações e orientações do mundo do trabalho constituiu-se uma plataforma de entendimento e expectativas partilhadas: fosse a República um fi m ou um meio para alcançar uma sociedade mais justa, era possível um combate comum contra a monarquia constitucional. Os republicanos construíram um discurso socializante e reformista de proximidade e atenção à questão social. Estes e os trabalhadores partilharam uma visão do que poderia e deveria ser o futuro.

Os trabalhadores não eram, obviamente, um grupo homogéneo, coexistindo uma miríade de situações diferentes a nível económico e social. Concentravam-se nas cidades e em bolsas industriais e, embora minoritários, a sua concentração geográfi ca, sobretudo na Grande Lisboa, conferia-lhes um importante papel social e político, tornando-os uma força a ter em consideração. Os trabalhadores, à semelhança de outros grupos e agentes políticos como os republicanos, procuravam fazer ouvir a sua voz, forçando a entrada no campo político exclusivista da monarquia constitucional. Existiam, é certo, diversos níveis de politização. De entre aqueles que começavam a pensar a sua situação e a lançar as bases para a organização das suas forças, encontramos um espectro político variado do anarquismo ao anarcosindicalismo e ao socialismo. O comunismo entrou no campo político e do movimento operário, depois da revolução russa de 1917, assomo de esperança para os trabalhadores e “pesadelo” para as classes mais conservadoras.

Feita a República, com o 5 de Outubro de 1910, o mundo do trabalho tinha, portanto, expectativas elevadas em torno do que o novo regime poderia – e deveria – fazer para responder às suas reivindicações. Os trabalhadores lutavam pelo direito à organização (os agrupamentos federais e nacionais eram proibidos) e defendiam o direito à greve. Apesar do interdito legal, verifi caram-se vários movimentos grevistas no início do século XX (que não cessaram depois da implantação da República). Um dos principais temas das reivindicações era a questão da necessidade da melhoria das condições de vida e de trabalho, numa conjuntura de enormes difi culdades num mundo sem protecção social, excepto as redes de entreajuda dos próprios trabalhadores, com condições de trabalho duríssimas e vivendo, muitas vezes, em habitações miseráveis nas “ilhas” e nos “pátios” operários.

Os governos republicanos manifestaram preocupação com a “questão social”, é certo, mas, na maioria dos casos, as medidas ficaram aquém das expectativas dos trabalhadores. A primeira decepção dos trabalhadores teve lugar em Dezembro de 1910, com o “decreto burla” que legalizava tanto a greve como o lock-out patronal. Apesar da promulgação de várias medidas de carácter social (por exemplo, o descanso semanal e a lei de assistência), os movimentos grevistas de 1911 e 1912, fruto de um crescendo combativo operário e do desenvolvimento do associativismo nos meios rurais, provocariam sérios embates entre o poder republicano e os trabalhadores. Foi o início de uma “guerra aberta”, com episódios de grande violência, entre os republicanos no poder e o movimento operário organizado, temperada apenas pelos breves momentos de união, quando estava em causa a defesa do regime, ou quando algumas medidas legislativas moderavam o conflito. O Partido Democrático, que mais tempo ocupou as cadeiras ministeriais durante a República, teve uma política de contenção e repressão do movimento operário – não é por acaso que Afonso Costa era conhecido pelo “racha-sindicalistas”. Um número signifi cativo de entre os republicanos não era “revolucionário” nem radical e entendia que a questão social deveria ser resolvida, mas de forma progressiva, pela via reformista. Se bem que entendessem a importância deste problema, consideravam que era mais importante consolidar o regime, que, de facto, tinha inimigos que contra ele conspiravam. Veja-se, por exemplo o caso das incursões monárquicas em 1911 e 1912, capitaneadas por Paiva Couceiro.

Poderíamos fazer referência ainda aos problemas entre o poder republicano e a Igreja Católica na sequência de algumas medidas legislativas, a mais importante das quais a Lei de Separação de Abril de 1911. No governo, pretendiam de algum modo satisfazer as chamadas forças vivas, mostrando como podiam e sabiam fazer uma administração respeitável e sem demasiados “excessos”.

A Primeira Guerra Mundial (1914- 1918) veio agudizar as relações entre o poder republicano e os trabalhadores organizados. A crise económica, nomeadamente a alta de preços, penalizou grandemente todos aqueles que viviam de rendimentos fixos ou que não conseguiam que os seus salários aumentassem, trazendo consigo o descontentamento das populações e o aumento da confl itualidade social, fosse através de movimentos organizados, como as greves, muitas delas organizadas pela central dos sindicatos, a União Operária Nacional, fosse através de uma espécie de motins da fome. De entre estas movimentações espontâneas, vale a pena referir os assaltos a estabelecimentos comerciais, nomeadamente a “revolução da batata” de Maio de 1917.

O caso da experiência sidonista é ilustrativo da divergência entre a prioridade dada à questão política em detrimento da social. Sidónio Pais subiu ao poder depois do golpe de 5 a 8 de Dezembro de 1917, contando com a “expectativa benévola” dos trabalhadores organizados, em rota de colisão com o poder afonsista, sobretudo depois do Verão de 1917, um dos mais duros no tocante aos conflitos entre grevistas e poder republicano. Este apoio inicial do mundo do trabalho seria desbaratado pelo poder sidonista, que defendia a necessidade de revolução política, não considerando tão urgente e necessária a resolução da questão económica e social.

Depois da I Guerra

Um momento excepcional nas relações entre o poder republicano e o mundo do trabalho foi a entrada de um ministro socialista (Augusto Dias da Silva) para o governo, a conjuntura de Maio de 1919 e o pacote legislativo com medidas de grande importância (dia de trabalho de 8 horas e seguros sociais). Compreende-se a promulgação destas medidas na conjuntura política coeva. Em primeiro lugar, vivia-se o pós-Primeira Guerra Mundial. Os sacrifícios pedidos e feitos pela população obrigavam a um renovado interesse pela situação económica e social de sociedades destruídas e exauridas. De igual modo, a revolução russa de 1917 e os subsequentes movimentos sociais forçavam a essa atenção, sob pena de estas sociedades terem entre mãos um descontentamento impossível de manter. A nível interno, a República que afastara o sidonismo, que vencera a intentona monárquica de Monsanto e a Monarquia do Norte, contara com a participação do republicanismo radical, popular e com os trabalhadores. Nos anos de 1919 a 1926 assistimos a uma recomposição do campo político, surgindo a lume projectos de esquerda e de direita, registando-se um renovado interesse na questão social. Mas, do lado contrário, reorganizavam-se as “forças vivas”, confrontando-se, assim, dois blocos sociais antagónicos. O movimento operário esteve particularmente activo nos anos de 1919 e 1920, mas muitos autores apontam a perda do “pão político” (preço regulamentado pelo Estado) em 1923 como um sinal de enfraquecimento do movimento operário.

Fazendo um balanço final da relação entre o republicanismo, o poder republicano e o mundo do trabalho, podemos pensar em encontros e desencontros entre estas duas forças políticas, sociais e culturais. Existiu sempre no republicanismo uma corrente socializante e próxima das preocupações dos trabalhadores organizados; no entanto, no poder, na maioria dos casos, os governos reagiram com dureza às movimentações dos operários. Apesar disto, a ideia de República – diferente da prática política dos governos republicanos – sobreviveu, para alguns trabalhadores, como aspiração e como ideal e por ela se bateram em momentos críticos do regime. Os republicanos precisaram dos trabalhadores na luta contra a monarquia e não poderiam tê-los como inimigos depois da chegada ao poder; mas nem sempre as prioridades republicanas estavam em consonância com as dos trabalhadores.

Para se entender a República é necessário levar em linha de conta a relação complexa, muitas vezes de convergência e outras tantas confl itual, entre o republicanismo e o mundo do trabalho; esta é, sem dúvida, uma das questões centrais para a leitura e compreensão deste período.

Historiadora, investigadora do Instituto de História Contemporânea
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