Discurso de Lula da Silva (excerto)

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segunda-feira, 17 de maio de 2010

Casta Susana ou representações de Susana e os Velhos

Casta Susana

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Representações de  Tintoretto, Lorenzo Lotto, Albrecht Altdorfer, Artemisia Gentileschi, Guido Reni, Guido Cagnacci,  Jacopo Bassano, Rubens,  Goltzius, Jan Sanredam, Rembrandt, Salomon Konink, Van Dyck, Alessandro Allori, Pompeu Batoni


O assunto que hoje trago está ligado a uma história contada no Livro do Profeta Daniel, um dos setenta e três que formam a Bíblia Católica.
Porque digo Bíblia Católica? Há outras que não o sejam?
Há sim. A Bíblia do Judaísmo tem apenas 39 livros, a dos Protestantes, com o Novo Testamento, soma 56 e a dos Católicos Romanos perfaz 73 incluindo vários textos adicionais.

(Uma sugestão para não perder o fio da leitura: Leia todo o texto em letra branca e direita, e veja as imagens. Deixe para o final as notas iconográficas que cada imagem tem, em itálico e cor azulada).
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Todas as pinturas mostradas neste artigo, nesta e na próxima página, podiam chamar-se "Susana e os Velhos". Embora o tema seja ilustrado desde as Catacumbas romanas (Sec. 1 a.C) só consegui encontrar imagens a partir da Renascença Italiana (sec. XVI).
Acima é a primeira versão que Tintoretto (Jacoppo Robusti, 1518-1594) fez do tema de Susana. Está no Museu do Louvre. Susana é mostrada a ser objecto de cuidados de toilette pelas suas servas e olha sem qualquer embaraço o espectador que vê a cena. Antigamente ninguém fazia o mínimo esforço de  “pesquisa arqueológica” para adaptar a situação ao tempo em que ela se passou. Se o episódio ocorreu durante o cativeiro dos Judeus na Babilónia, então teria sido antes de 538 a.C. Esta e todas as restantes pinturas que se seguem mostram a cena como se ela tivesse passado no século em que foi pintada, como era costume.

A Bíblia foi concebida por centenas, talvez milhares de pessoas e transmitia-se de geração em geração, originalmente, em tradição oral. Depois da invenção da escrita foi fixada em Hebraico e uma pequena parte em Aramaico. Mais tarde foi traduzida para Grego, a língua franca da antiguidade, depois para Latim e todas as línguas vulgares conhecidas.
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De alguns textos nem sempre foi encontrado o original hebraico, só havia em grego. A esses, os Protestantes, estudiosos muito exigentes das Escrituras, recusavam-nos como apócrifos, “secundários” ou dispensáveis. É o que aconteceu com a história de Susana, por exemplo.
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A segunda versão é, talvez, a mais famosa. Em ambas se sente alguma inadequação do tamanho dos Velhos, considerando o local em que estão na perspectiva. Tintoretto, protótipo do artista Maneirista veneziano, está mais preocupado com a dinâmica e o movimento das composições, do que com a consistência das suas perspectivas. Nesta tela a bela Susana está sozinha, rodeada de adereços luxuosos e olha-se ao espelho, ignorante da presença dos depravados anciãos.
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A história de Susana e os Velhos

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No tempo em que os judeus viviam em cativeiro na Babilónia, Joaquim, um abastado proprietário era casado com Susana, uma bela e virtuosa mulher. Viviam numa casa grande com um pomar junto ao rio. Costumavam receber diariamente em sua casa muitos judeus ilustres. Dois anciãos que haviam sido recentemente eleitos juízes, eram visita assídua da casa e cobiçavam secretamente a esposa do dono da casa. Susana ― em hebraico quer dizer Lírio, símbolo da pureza ― ignorava essas intenções. 
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Um dia, pela força do calor, e quando todos se haviam recolhido para a sesta, decidiu tomar um banho na ribeira que passava no pomar. Mandou fechar os portões da propriedade e pediu às servas que fossem a casa buscar óleos e unguentos. Mas os anciãos tinham ficado dentro do jardim, e espreitavam-na escondidos no arvoredo. Quando a sentiram sozinha abordaram-na exigindo que se lhes entregasse logo ali. Como ela recusasse, os juízes ameaçaram-na de contar ao povo que ela cometera adultério. Susana desatou em grande alarido e invocou a ajuda a Deus. Quando os criados acudiram, os perversos anciãos acusaram-na de atraiçoar seu marido com um jovem. Naquele tempo a lei condenava à morte a mulher casada que cometesse adultério e dessa forma começou a ser julgada pelo tribunal. Indignado com toda a injustiça que estava a acontecer, um jovem chamado Daniel resolveu intervir em ajuda de Susana. No tribunal pediu que os acusadores fossem interrogados em separado. Como os detalhes de cada um fossem discordantes, ficou provado que estavam a mentir e que Susana estava inocente. Foi absolvida e os infames juízes, por sua vez, condenados à morte. (Resumo de Daniel, 13, 1-64)
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Esta pintura de Lorenzo Lotto é a mais antiga das que mostro neste artigo, e uma das mais ingénuas. Ilustra um momento mais avançado da história, em que os desapontados juízes se vingam de Susana, divulgando junto de ocasionais testemunhas que a senhora cometera adultério. Susana, mais parecida com uma mártir ― até tem um halo de santidade ― pede a intervenção divina através de uma frase escrita em Latim na carteleta por de trás da sua cabeça. O juiz de gorro negro expõe as suas acusações através do mesmo artifício.


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Esta pequena tela de 75 cm de altura faz jus à fama de paisagista do seu autor. Tem uma multidão de pormenores: uma reunião de pessoas no terraço, um complicado palácio de mármore de estilo italiano, a cena do jardim, vista de cidade e montanhas azuladas ao longe, tudo sob um céu de altos cirros batidos pelo vento. Tanto detalhe acaba por distrair o espectador e diluir a tensão dramática que está patente na descrição oral. O título original desta tela é, de facto, “Susana no banho e Lapidação dos Velhos”, ou seja, a pintura representa dois episódios diferentes da mesma história.
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Como a imagem é muito pequena, não se consegue divisar bem, mas fica-se a pensar que a lapidação dos anciãos é a acção que decorre no terraço, à direita. Aos velhos voyeurs mal os conseguimos distinguir na cena à esquerda: rastejam sob uns pequenos arbustos. E Susana, que a Bíblia diz estar a banhar-se no rio, está simplesmente a deixar que uma aia lhe lave os pés, numa bacia de água. Que decepção! Adivinha-se que o pintor, muito mais liberal noutras telas que pintou, estava aqui sob forte pressão moralista do seu patrono.
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No pólo oposto da expressão de Altdorfer está esta “Susana” da autoria de uma das raras mulheres pintoras que, de meu conhecimento, tenham existido antes do século XVIII. Artemisia, filha do pintor Orazio Gentileschi, colaborava com seu pai, mas assinou sozinha, e de seu direito, muitas obras de qualidade. Ao contrário das outras imagens que mostrei até aqui, esta realça o conflito entre os protagonistas:  a repulsa de Susana e o insistente assédio dos cavalheiros que parecem concertar entre si uma táctica de investida. Mais nenhum elemento, paisagem, personagem ou ornato, distraem a nossa atenção do acto que se desenrola à nossa frente. O genuíno repúdio que se percebe na atitude da jovem talvez se explique, em parte, pelo facto de a própria artista ter sido violada por um colaborador da oficina de seu pai.
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Nudez com álibi

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Posto que a narrativa de Susana seja apócrifa, os compiladores da Bíblia vaticana devem ter achado que valia a pena conservar esta história edificante de uma mulher casada que vê publicamente premiada a sua virtude. Prelados, abades e patronos não tardaram também a pedir aos artistas que ilustrassem um episódio tão moralizador quanto… picante. Mostravam depois essas obras nas suas residências, nos conventos e até na sacristia das igrejas.
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A virtuosa senhora, aqui uma adolescente, ainda tem um vago sobressalto de pudor e busca um pouco do tecido para cobrir a sua nudez. Um dos juízes pede silêncio enquanto tenta agarrar o manto.
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As preocupações com o pudor não parecem afligir esta Susana mais madura…
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…muito menos a de Jacopo Bassano, que parece estar de monokini na melhor das cavaqueiras com os anciãos, apesar dos joelhos rosados denunciarem uma prática frequente da oração ajoelhada. Um dos juízes parece pedir “só uma”, enquanto o outro mostra que a porta do quintal está bem fechada. Esquecem-se das janelas do casarão, onde parece divisar-se uma figura.

De facto, julgo que o grande sucesso que o tema conheceu no passado deriva do deleite que muitos homens experimentam quando vêem imagens da fêmea da espécie com pouca ou nenhuma roupa, sobretudo se for jovem, formosa e em situação de fragilidade.

Simon Schama, o reputado biógrafo de Rembrandt, descreveu a situação desta forma: “… os artistas do Barroco conspiravam com os seus patronos para organizarem uma manifestação de indignação moral, enquanto, ao mesmo tempo, transformavam a nudez das heroínas numa oportunidade calculada para as espreitar.”
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Rubens, pintor e homem da corte, fez numerosas Susanas a pedido dos seus patronos. Um deles, o embaixador de Inglaterra, escreveu-lhe preocupado se a pintura "seria suficientemente bonita para enamorar um homem velho", ao que Rubens respondeu que seria certamente uma “galanteria”.

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Jan Govaerts encomendou uma Susana ao pintor Goltzius em que o atrevido proprietário deveria figurar como um dos velhos  juízes, regalando-se a apreciar o corpo da mulher.
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Nem toda a gente, porém, tinha recursos para adquirir uma pintura a óleo para ter em sua casa um motivo tão piedoso quanto edificante. Assim, os gravadores flamengos, operando em termos verdadeiramente industriais e sem fronteiras, encarregaram-se de produzir numerosas variantes do tema. Nesta água-forte de Sanredam  a virtuosa esposa não dá sinais de surpresa ou de resistência. Dengosa, apenas se limita a olhar os céus, certamente invocando a sua ajuda.

Os Gregos e os Romanos da antiguidade cultivaram as artes com elevado nível e não tinham limitações religiosas para os seus temas. Mas depois da implantação do Cristianismo e do seu código de costumes de origem judaica, as artes passaram a ser policiadas de perto.
A Igreja era o primeiro cliente dos artistas, além de ter um grande ascendente sobre os governantes, quando não era, ela própria, poder político. O corpo humano passou a ser considerado como fonte de pecado e foi proibida a sua exposição, com raras excepções: o Cristo agonizante na cruz, e as representações de santos a ser martirizados, como São Sebastião, com o corpo atravessado de flechas. O moralista Geesteramus que escreveu contra a indecência na pintura, vociferava particularmente contra as narrativas de Susana: “As Susanas são um cancro para a moral e um veneno para os olhos.”
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Nas duas versões que conheço de Rembrandt sobre o tema, o mestre teve o condão de nos envolver também na história: A sua Susana, embora acossada pelos dois anciãos, olha-nos nos olhos e parece descobrir que nós, o público amador de pintura, não passamos de espreitadores, à socapa, da nudez alheia. É de nós que ela se protege. Ora tomem!
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Para se poder contemplar a seu bel-prazer imagens com o corpo feminino desnudo haviam elas que ser inspiradas nas Escrituras e conter uma justificação moralizante; daí a popularidade de temas como a “Casta Susana”, “David e Betsabé”, “Adão e Eva” e as “Filhas de Lot”. Nalguns meios mais civilizados, servia também a invocação de valor cultural da Antiguidade Clássica. Neste caso abundavam os episódios da Mitologia Greco-Romana, que tinha atractivos particularmente favoráveis: os deuses andavam nus e eram completamente depravados, passando todo o tempo a cobiçar, na maior impunidade, outros deuses, semi-deuses e mesmo os mortais. Era um regabofe pegado. Temas não faltavam.
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O comportamento da Susana é muito variável. Pode ela mostrar que está claramente contrariada com o assédio dos velhos…
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…ou pode, noutras versões, estar divertida, quase colaborante, com as investidas dos seus admiradores.
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Nesta versão de Pompeu Batoni, ela está genuinamente assustada com o vulto do velho que galga o murete, enquanto o outro lhe oferece uma bolsa de moedas, uma inovação em relação à narrativa bíblica.


Podíamos prosseguir muito mais tempo só com as variantes da história da Casta Susana, mesmo até ao século XXI. 
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O “liberalismo visual” dependia muito do lugar: em Portugal, onde durante séculos campeou o Santo Ofício, beatamente conhecido também como Santa Inquisição, até as Senhoras do Ó ― imagens da Virgem Maria grávida ― foram banidas por indecentes. Uma ou outra que tenham chegado aos dias de hoje, é porque foram enterradas à pressa para escapar à fogueira, ou à serra de carpinteiro.

(Fim)
 
Sítio do Imaginário


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"Uma regra elementar do discurso é que não existe qualquer razão para não se prosseguir com uma conversa animada e cativante, só porque se encontra sozinho na sala" 
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