Discurso de Lula da Silva (excerto)

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terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Natal Cristão: Redenção ou Mito? - Jorge Messias



 

Geral

 
Vermelho - 14 de Dezembro de 2009 - 17h15

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"O tema escolhido para o presente debate poderá parecer, à partida, deslocado e sem grande interesse. O Natal é Redenção para uns, para outros é pura ficção. O Natal cristão consiste, deste modo, numa questão de leitura". 

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Por Jorge Messias*, em debate por ele coordenado realizado no dia 11 de dezembro na Câmara Municipal de Setúbal, em Portugal.

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No entanto, uma vez ultrapassado este limiar é possível, a partir da história tradicional do Natal, abrir uma janela por onde se possa olhar criticamente o passado, se entenda melhor o presente e se entrevejam algumas bases de uma posição ética comum face aos gigantescos problemas sociais que surgem a ritmo galopante. Tentemos a aventura.
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O "Natal Cristão" é revelação ou mito? Mito é, com certeza, ainda que esta evidência não envolva à partida qualquer carga negativa. Todas as formas do conhecimento passam por uma fase mítica. O mito é, simplesmente, um enigma que se transforma em símbolo. Torna-se depois necessário traçar-lhe o rumo, compreender os significados da sua substância e depurá-los.
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Numa síntese muito rápida lembremos que a Festa da Natividade assenta na tradição pagã das celebrações do solstício; que os festejos em 25 de dezembro foram marcados para essa data porque nela se perfaziam nove meses (o tempo de uma gestação) desde que a Maria de Nazaré surgira o anjo que a fecundara com o Espírito Santo; e que a narrativa inicial que dá corpo à história do Natal só é tentada pela primeira vez pelos evangelistas uns 60 anos após o nascimento de Cristo, sofrendo posteriormente o texto numerosas alterações.
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Tudo em grego e em latim, línguas só acessíveis às camadas mais cultas. A primeira tradução da Bíblia para uma língua moderna, o alemão, deveu-se a Lutero e foi impressa já no século 16. Por outro lado, as diferentes versões bíblicas tinham de receber a chancela do Concílio dos Bispos.
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De qualquer modo, o mito natalício contém em si mesmo, ainda que de uma forma simbólica e não-organizada, muitos dos ingredientes ou valores básicos que vieram a integrar a teologia e a liturgia católicas e a definir os dogmas e os contornos sociais da Igreja como instituição. Também convém recordar que só três séculos depois do nascimento de Cristo, o mito cristão se transformou em projeto utópico, com a instalação de formas rígidas de organização eclesiástica e a antevisão profética de uma cidade quimérica reservada por Deus para os seus escolhidos.
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O império romano desagregava-se e em todas as suas províncias reinava o caos, a violência e a fome. Desabavam, com a nova ordem instituída, os velhos cultos pagãos. Sentia-se estar-se em presença de uma ruptura civilizacional favorável ao estabelecimento de novos quadros de valores, nomeadamente à fundação de uma nova religião fortemente centralizada e monoteísta; da afirmação de uma hierarquia forte que atraísse e conduzisse as massas populares e ligasse as elites ao culto do sagrado, que impusesse os princípios da disciplina e da obediência e que estabelecesse um laço de relações íntimas e permanentes entre a "cidade de Deus" (a Igreja) e a "cidade dos homens" (a Coroa, o Estado feudal e as Ordens monásticas e militares).
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É retomando a substância do mito do Natal que iremos reencontrar muitas das referências dessa ideologia inovadora nas vertentes religiosas, políticas e eclesiásticas da “Nova Ordem” nascente estabelecida pela “ Igreja una, santa, católica e apostólica”. Tudo se passou há muitos séculos, o que não impede que se possa estabelecer um paralelo com os percursos do capitalismo globalizante dos nossos dias.
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Na história do Natal tudo depende do maravilhoso e do sobrenatural, nada precisa de ser fundamentado e sujeito ao pensamento crítico. O anjo apareceu a Maria, transformou-se num sonho e surgiu a José, ditando-lhe o que ele devia fazer; uma estrela guiou os reis magos; uma voz alertou a Sagrada Família do projeto de Herodes de matar os meninos.
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Em todas estas passagens, os anjos foram obedecidos disciplinadamente e terá sido essa a causa da salvação de Jesus, Maria e José. A obediência a Deus é a chave da salvação.
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Também a história dos "Reis Magos", vindos para adorarem o menino, merece reflexão. Os magos eram sábios pagãos com estatuto de realeza, senhores do ouro, do incenso e da mirra imprescindíveis ao culto e recobriam-se com mitras douradas e coroas reais. Reuniam em si mesmos a fortuna, a autoridade e o poder da profecia ou adivinhação. Eram profetas pagãos.
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Estes reis magos atravessaram pela fé o deserto hostil, guiados por uma estrela e prestaram vassalagem ao Menino-Deus que prefigurava a futura Igreja Universal. Assim, o poder pagão e laico convertia-se e reconvertia, através da obediência ao divino, toda a sociedade feudal.
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É sintomático o fato de a época do Natal começar o ciclo das celebrações a 25 de dezembro, data do nascimento de Cristo, encerrando esse breve período em 6 de Janeiro, com a Festa dos Reis Magos.
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A magia pagã, fulcro essencial do poder antigo, curvava-se perante a Criança Divina e o mundo ia nascer de novo, conduzido ao Paraíso pela mão segura da igreja profética prestes a revelar-se. Uma escassa dezena de dias resgatados pela Doutrina mas que, no entanto, contêm a simbologia básica que rege o mundo cristão.
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Estavam dados os primeiros passos para a construção da "cidade de Deus", aquela que abrigaria na Igreja o poder espiritual, o poder político e financeiro e a autoridade eclesiástica. Esta relação de intimidade atravessou a História e continua poderosa e presente nas estruturas de decisão políticas globais do século 21.
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Porém, o código oculto da história do Natal não acaba aqui. Jesus era filho de um carpinteiro e de uma camponesa. Os humildes pastores foram os primeiros a adorá-lo. Nasceu num estábulo. Toda a sagrada família, fugindo à guerra e à perseguição, a pé atravessou o deserto. Tudo sugeria ruralidade e pobreza. Porém, Mateus, com um toque de magia, introduziu na primeira versão do seu Evangelho, logo na abertura do livro, um capítulo onde se explica, com minúcia de historiador, que a estirpe de Jesus era antiquíssima e ilustre, entroncando no rei David e em Abraão. Estava feita a ligação do mito cristão ao sistema feudal (clero, nobreza, povo).
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Todavia, ao inverter assim o enquadramento social da história que iria contar em seguida (o Evangelho segundo S. Mateus), nobilitando a imagem do filho pobre de um carpinteiro, Mateus compreendeu ser incorreto e impopular desprezar o povo simples e trabalhador, os pobres. Então, retocou o seu próprio discurso. Foi o caso da curiosa "parábola do jovem rico" que a seguir se resume.
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Certo dia, um jovem ajoelhou-se aos pés de Jesus e interrogou-o acerca do que deveria fazer para salvar a sua alma. Jesus respondeu e disse: "Falta-te fazer uma coisa: vai, vende tudo quanto tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro nos céus".
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A conclusão da história é curiosa e pode ser citada como um paradigma das regras táticas da Igreja, nessa altura ainda em processo de formação. Comenta o evangelista: “Mas o mancebo, pesaroso desta palavra, retirou-se triste. Porque possuía muitas propriedades”. E Mateus concluía: "É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus".
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Abriam-se de par em par para o futuro as portas do magistério ao uso e abuso do duplo sentido, do sofisma e da fusão ou da distanciação dos contrários, o largo corredor da contradição, tão frequente nas teses da igreja católica.
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Note-se que Mateus sabia do que estava a falar. Antes da sua conversão ao cristianismo fora publicano isto é, cobrador de impostos ao serviço do Império Romano. Cargo terrivelmente tentador e pouco transparente. E se insistimos nesta parábola, é porque ela inspirou nitidamente os dogmas e o tipo de ética que a Igreja viria depois a perfilhar. Uma leitura ambivalente assente na prática que consagra simultaneamente, duas doutrinas de classe: a Igreja dos Pobres e a Igreja dos Ricos. Duas linhas de desenvolvimento de sinais contrários para a mesma doutrina. Mas também duas linhas sempre disponíveis para serem usadas alternadamente pela hierarquia da Igreja.
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Valores opostos entre si que a hierarquia pode manipular permanentemente através da palavra redonda e do carácter abstrato dos seus valores-chave tais como Conversão, Perdão, Reconciliação, Compaixão, Misericórdia, etc., etc. Tal como as pitonisas gregas, o discurso da hierarquia da igreja nunca é claro e evita ser excessivamente categórico.
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Atualmente, nesta área as estratégias da igreja são servidas pela experiência acumulada ao longo dos séculos e por um aparelho eclesiástico extremamente rico e poderoso. A Igreja é presentemente "a maior e mais antiga multinacional em todo o mundo" tal como o reconheceu, há poucas semanas, uma autorizada fonte de investigação empresarial estadunidense. Não deixa de ser curioso verificar que toda esta gigantesca estrutura que domina o mundo surgiu e organizou-se no tempo, a partir do fato banal que foi o parto de Maria.
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Agora, o poder eclesiástico instalado "lá vai governando a sua barca de ouro" nos cenários edílicos do retábulo e das palhinhas. Mas os tempos são outros. Se o poder político e financeiro de que a Igreja dispõe é praticamente ilimitado, o Vaticano tem uma crescente dificuldade em ocultar as suas alianças secretas. De esconder que a força dominante que salva o lenho divino das tempestades e marés é, sem sombra de dúvida, a igreja dos ricos e não os Anjos ou a Virgem Maria. Os "ricos" com os seus escândalos, a sua cupidez, a sua completa falta de escrúpulos, amoralidades que a doutrina católica aparentemente condena.
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A questão, no entanto, é que a Igreja precisa deles, os ricos, e eles da Igreja. Mas como justificar perante o povo católico esta relação de unha com carne quando reinam no mundo a fome, a pobreza e o desemprego? Como manter intocável o "mito do Natal", fonte de muitos outros mitos? Sobretudo, como explicar às massas que a Igreja consegue "agradar a Deus e ao Diabo", sendo una e santa e planando acima de todas as contradições?
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Outrora, os povos mais humildes permaneciam pacíficos, ingênuos, crentes e submissos, perante as ofensa e as humilhações. Punham a sua esperança no sobrenatural. Uma palavra da Igreja bastava para emudecer a sua ira. E já então, tal como agora a Igreja, aliada dos poderosos, cumpria o seu papel de tampão nas lutas sociais. Mas com o rolar dos tempos muitas coisas se alteraram e estão a mudar.
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O grande problema que agora alarma o Clero é o de começar a sentir-se incapaz de inverter o curso de tendências cada vez mais presentes na própria igreja. Crescentemente, os homens põem em dúvida o sobrenatural e denunciam o papel que a Igreja desempenha no venenoso enredo capitalista. É cada vez mais evidente que são incompatíveis as perspectivas que o Papa, a Companhia de Jesus ou a "Opus Dei", alimentam acerca da religião ou do Estado e aquelas que resultam da observação, do sofrimento e da experiência dos povos.
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O homem explorado, alienado pela sociedade e duvidoso do que lhe contam e dizem, está a um passo de contestar a tutela da Igreja. Alarmada, a hierarquia observa receosa a progressão deste clima de contestação, antecessora potencial de uma eventual luta de classes no interior da própria confissão. Num futuro próximo, os jogos malabares da manipulação das realidades sociais parece terem os seus dias contados.
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O atual panorama mundial é grave e alarmante. Vivemos num mundo onde se agudizou até ao extremo a corrupção, a exploração do homem pelo homem e o fosso entre pobres e ricos. E é incontroverso que os meios de comunicação se desenvolveram explosivamente e que, no imediato, ainda que ferozmente manipulados pelos interesses dominantes, não deixam de dar a milhões de famintos a noção do poder criador do gênero humano, o saber que se choca frontalmente com a tradição dos mitos sobrenaturais. O homem tudo pode mudar. Assim o homem o queira. E se tentarmos transportar para dentro da esfera religiosa esta consciência crescente da capacidade criadora da humanidade, veremos que hoje, tal como nos tempos do Natal, as fronteiras da sociedade civil e religiosa se abeiram da ruptura, da mudança e da negação do mito.
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Agora, os povos entendem como nunca o que é a injustiça e já sabem distinguir aqueles que lutam pelos direitos das classes trabalhadoras, dos outros que muito falam mas pouco ou nada fazem para evitarem a corrosão e a destruição das sociedades a caminho da democracia.
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Quanto à Igreja, é nítido que não coloca o seu poder serviço da razão, da ética, da transformação positiva do mundo e da defesa dos pobres. O que lhe tolhe os movimentos – tal como nos tempos do mito do Natal aconteceu com o Império romano – é a ilimitada e persistente ambição do poder que a caracteriza, o arbítrio do sobrenatural convertido em dogma, o carácter impositivo da sua doutrina férrea e a duplicidade de intenções da acção das suas teias sociais em relação aos pobres e aos explorados. A Igreja caminha para o isolamento.
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Em jeito de conclusão, apenas uma alusão mais ao velho mito do Natal cristão. Com o rolar dos séculos, o Natal não cessou de evoluir negativamente. Sendo inicialmente fruto de uma proposta ingênua e utópica, com a passagem do tempo foi-se degradando. O capitalismo, tornou-o uma mercadoria e orientou-o para a busca da inovação e de novos mercados. Então, o Natal converteu-se ao paganismo da publicidade. Enredou-se nas técnicas de venda e para se valorizar aceitou intrusos a que era alheio, como os Pinheiros de Natal, o Papai Noel, a Carruagem das Renas, os Presentes Natalícios, os Retábulos, o Sapatinho na Chaminé, etc. Abastardou-se. O Natal não é já cristão, nem sequer é mito cristão.
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Existe como marca de referência. Vende-se no mercado. Distingue os ricos, com poder de compra, dos pobres que pouco têm. Mas a sua história merece ser estudada como um roteiro dos caminhos seculares da Igreja.
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* Jorge Messias é colaborador de Odiario.info

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