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domingo, 17 de janeiro de 2010

Abraços Partidos: A alma masculina segundo Almodóvar


 

Cultura

Vermelho - 24 de Novembro de 2009 - 12h03

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Pedro Almodóvar, o mais aclamado cineasta espanhol da sua geração, moldou uma linguagem que é um dialeto único (mas universal e inconfundível): narrativas prismáticas, repuxos de melodrama, iconografia pop, canções bregas num contexto intelectual, humor debochado, cores berrantes e cenários espalhafatosos.

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Todos esses recursos e maneirismos - esgrimidos para dissecar temas como o desejo, a paixão, a família - variaram de acordo com as fases que o diretor percorreu. No seu filme mais recente, Abraços Partidos, ele fixa o caleidoscópio, estabiliza o seu vórtice, não com a indolência formal dos acadêmicos, mas com a plenitude complexa dos mestres. Um vanguardista classicista? Quase, pois há um fator que assegura o moto-perpétuo inovador do cineasta: a redenção do macho.
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Para compreendê-la, um pente-fino nas etapas desse sessentão novinho em folha. Almodóvar nasceu na região da Mancha, a mesma de Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura. O pai dele era semianalfabeto e transportava barris de vinho numa mula. Já a mãe encorajou o filho a estudar - adolescente, Pedro lia e transcrevia cartas para os vizinhos. O modelo para o complexo de Édipo é demasiado estereotipado (mesmo que não existissem um filme intitulado Tudo sobre Minha Mãe, de 1999, e uma filmografia que cultua uma idealizada figura feminina) - portanto, convém evitá-lo cuidadosamente.
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O primeiro filme foi uma dinamite estética que abriu uma cratera na cultura espanhola e criou o nicho para a cena artística conhecida como "La Movida": Pepi, Luci e Bom e Outras Garotas da Turma (1980). Estabeleceu o Almodóvar como um agente provocador, que celebrava o kitsch transfigurando-o em brega, enquanto jorrava um humor ultrajante e uma sexualidade escabrosa.
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Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), o primeiro grande sucesso internacional do diretor, representa uma dúbia regeneração daquela passionalidade quase gongórica. Fingindo não passar de uma leve comédia feminista, cimentou a reputação de Almodóvar como "diretor de atrizes", na linha do americano George Cukor e do alemão Rainer Werner Fassbinder. Volver (2006) é a ode máxima ao estoicismo feminino e roça o ditirambo: três gerações de mulheres sobrevivem a vendavais, incêndios e à própria morte. Enquanto isso, os homens são descartáveis (mas não recicláveis).
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A breve "retrospectiva Almodóvar" exibida acima tem uma razão de ser. Ela é essencial para entender como Abraços Partidos representa uma nova fase em sua carreira, com a reabilitação da figura do macho. Vamos ao enredo. O protagonista, Mateo Blanco, cineasta e roteirista, sofre um acidente de automóvel que lhe rouba a visão e o amor da sua vida. Decide, então, que Mateo deveria morrer junto com sua amada Lena, interpretada por Penélope Cruz.
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O protagonista, assim, oblitera uma parte de si mesmo, passando a encarnar a persona que tinha escolhido no reino literário, o pseudônimo com o qual assinava seus livros: Harry Caine. Decidido a eliminar todos os vestígios do seu eu anterior, Harry usa a cegueira para apurar os outros sentidos, o que o torna mais fascinante e poliédrico. Catorze anos mais tarde - o momento em que o filme começa -, Mateo/Harry reconta sua história a Diego (seu filho, o que ele ignora). Trata-se de uma saga dilacerante de amor louco, fatalidade, ciúme e traição, na qual o escritor cego exuma e ressuscita a sua identidade "póstuma".
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A revolução do filme consiste no fato de que, em Abraços Partidos, Almodóvar, um diretor fascinado por mulheres, cria o mais nobre personagem masculino de sua longa filmografia. Mateo/Harry conjuga a sabedoria trágica de um Lear com a ciência benevolente de um Próspero. E sepulta - com a sua dimensão dramática e humana - a lacuna de bons tipos masculinos na obra do diretor. Almodóvar nunca se aprofundou tanto na psicologia do homem quanto neste filme.
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Mostra isso não com falas, mas com imagens, como é de seu feitio. Exemplo? Em uma cama, um casal está completamente enrolado em um lençol - incluindo as cabeças. Sabemos que a mulher é Lena. Mas quem será o homem? O marido que ela despreza e trai? Ou o amante que ela admira? O cineasta insinua que, embora os homens - como as mulheres - sejam diferentes entre si, na paixão eles são indistinguíveis.
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Por causa da narrativa de tom quase clássico, Abraços Partidos não foi uma unanimidade entre os analistas. Teria o incendiário degenerado em parnasiano, como resmungaram alguns críticos ávidos da provocação fácil? Pelo contrário: o mestre nunca foi tão cinematograficamente magistral. Não perdeu a eloquência no trato com as imagens, como na cena em que Mateo abraça o vídeo com a cena congelada do acidente, no momento em que beijava a amada.
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Como a colossal a escultura/móbile que orna a encruzilhada onde ocorre o desastre que mudou a vida de seu protagonista, assim é Almodóvar: camaleônico, metamórfico, proteico. Como o outro homem da Mancha, ele continua a sonhar acordado - pesadelos incluídos.
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Paulo Nogueira é jornalista e romancista, autor de O Suicida Feliz, Transatlântico e Um É Pouco, Dois É Demais - os dois últimos lançados apenas em Portugal.
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